sexta-feira, 21 de abril de 2023

Livro que ensina criança a se proteger de violência sexual é abraçado por conservadores e progressistas no Brasil dividido

 

CENA 1

Sentadas na cama, mãe e filha folheiam juntas um pequeno livro.

Em uma das figuras, uma menina com rosto zangado cobre com as mãos a região das mamas e da vulva. Ela está vestida. Na mesma figura, também vestido, um menino cobre com as mãos a região do pênis.

Outra figura mostra uma mulher colocando uma toalha em volta do corpo de uma menina. Ao lado, vê-se uma banheira. A legenda diz: Posso precisar de ajuda para ir ao banheiro tomar banho e trocar de roupa.

Mais adiante, outra figura mostra uma menina entrando por uma porta. Com ar ressabiado, ela olha para um homem atrás dela.

Perigo, diz a legenda. Tenho cuidado se alguém quer entrar no banheiro, me chama para brincar de médico ou passa a mão no meu corpo.

Apontando para uma das figuras, a mãe diz:

"Está vendo aqui, filha? Ninguém pode tocar nas suas partes íntimas."

E virando a página:

"E se alguém quiser entrar no banheiro, que nem está aqui nessa figura, você não deixa."

A menina, uma adolescente com Síndrome de Down, tem dificuldade de fala. Com esforço, ela diz:

"Não pode? Papai faz."

"Faz o quê?", pergunta a mãe. "Mostra aqui no livro."

Voltando para a primeira página, onde se vê uma menina de biquíni, com um "X" vermelho sobre a região genital, a menina aponta para a figura e diz:

"Ele põe a mão aqui."

Apreensiva, a mãe pede:

"É mesmo, filha? Me mostra como ele faz."

FIM DA CENA 1

Os nomes e outros dados pessoais foram omitidos, mas uma conversa muito parecida com essa realmente aconteceu. Foi assim que a mãe dessa adolescente descobriu que a filha estava sendo abusada sexualmente pelo padrasto.

O abuso pôde ser identificado graças a um livro fininho, com muitas ilustrações e pouco texto, que está se tornando um poderoso instrumento de prevenção ou, onde ela já ocorre, de detecção da violência contra crianças, inclusive a sexual.

Outro feito notável da revistinha, intitulada Eu Me Protejo, é sua aceitação por comunidades religiosas normalmente avessas a esse tipo de temática. E também por políticos conservadores e progressistas, entre eles, a ministra do Planejamento e Orçamento Simone Tebet, a deputada Celina Leão (PP), vice-governadora do Distrito Federal, o senador Romário (PL), a senadora Leila do Vôlei (PDT) e o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida.

Em dezembro de 2022, Eu Me Protejo foi ganhador do prêmio Pátria Voluntária, concedido por Michele Bolsonaro e pelo antigo ministério da senadora Damares Alves (PR), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Nessa reportagem, as autoras do livro, a jornalista Patrícia Almeida e a psicóloga Neusa Maria da Costa Ribeiro apresentam a cartilha e explicam como ela funciona. Com exemplos, também revelam como o abuso acontece - em segredo e, na maioria dos casos, dentro da família.

Finalmente, fazem um apelo ao poder público:

"Eu vou lá, descubro a violência, a cartilha tem meios de descobrir. Mas depois, o que vou fazer com essas crianças, com esses adolescentes, com essas famílias? Se não tenho uma rede de apoio para tirar a criança das garras do abusador?", pergunta Neusa Maria.

Como é a cartilha 'Eu Me Protejo'?

O desenho dispensa explicações. Em primeiro plano, a palma de uma mão aberta, um gesto universal que quase grita: "Pare!". A mão, em primeiro plano, parece gigante em contraste com sua dona, parada logo atrás e olhando direto para você, as sobrancelhas arqueadas sobre os olhos zangados. A menina, com vestidinho curto e cabelo afro, não está para brincadeira.

"Esse é o gesto que a gente ensina as crianças a fazerem, porque tem criança inclusive que não fala, então a gente ensina a botar a mão na frente - sai pra lá!", diz Patrícia Almeida à BBC News Brasil, comentando a ilustração na capa de Eu Me Protejo.

"É inacreditável, mas 32 anos depois da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a gente ainda não foi capaz de ensinar às crianças que o corpo é delas", diz Patrícia.

A primeira página da cartilha Eu Me Protejo ensina quais são as partes íntimas do corpo


Mãe de uma adolescente que tem Síndrome de Down, a jornalista há muito se perguntava como melhor preparar a filha para enfrentar os desafios que viriam com a puberdade e a se proteger dos riscos de abuso sexual e outras violências.

"É um problema muito maior do que imaginamos", diz.

"Se você é cega, surda, se você não fala, se você tem uma deficiência intelectual, você é muito mais vulnerável."

"E se você precisa de ajuda para ir ao banheiro, até onde vai o cuidado e onde começa o abuso?"

Patrícia Almeida, co-autora da cartilha diz: "E se você precisa de ajuda para ir ao banheiro, até onde vai o cuidado e onde começa o abuso?"


Quando a filha entrou na adolescência, Patrícia entendeu que precisava fazer alguma coisa. A menina era totalmente ingênua, despreparada para conviver com outros adolescentes, ela conta.

"Tive a ideia de fazer o Eu Me Protejo."

"Basicamente, são ilustrações e textos curtos dizendo, 'essas são as partes do seu corpo, o corpo tem partes que são íntimas, ninguém pode tocar nas suas partes íntimas, se alguém quiser tocar nas suas partes íntimas, fale com alguém de confiança'."

Click aqui e continue lendo a reportagem no BBC News Brasil

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