Século XXI
Naquele momento, lhe bateu saudade no coração e, no
estômago, uma comichão. Lembrou dos tempos de menino, morando no interior,
quando a preta velha, quituteira da casa, preparava uma galinha ao molho pardo
de se comer e lamber os beiços (e os dedos, depois de chupar os ossinhos).
Pensou consigo mesmo: “Hoje eu mato a saudade, e a fome, no capricho”.
O dia ficou comprido. As horas, os minutos, os segundos
foram contados até o momento de ir para casa, entregar a galinha para a mulher
e sentenciar: “Para a panela!”
Nem a mulher, nem a empregada, nem a vizinha. Ninguém queria
ou sabia matar uma galinha. O filho menor então, nunca tinha visto uma galinha
assim, ao vivo.
Quando eu li aquela crônica, eu nunca imaginei que um dia
aquilo pudesse acontecer comigo. “Mas quá! – pensei – Vê lá se isso é possível?
Nem daqui a cem anos”.
Não foram bem cem anos. Faz pouco tempo que eu ganhei uma
galinha de presente e levei, todo contente, pra casa, entreguei pra mulher e
sentenciei: “Molho pardo!”
Ela entortou o nariz e disse: “Quem vai matar? Eu não mato”.
Minha filha, pela mesma forma, negou-se, alegando que tinha “pena”. De nada
adiantou eu observar que quem tinha penas, era a galinha, e não ela. A
empregada, claro, já havia acabado as tarefas do dia e ido embora. Graças a
Deus, meu filho, ao contrário do filho do sujeito da crônica, já tinha visto
uma galinha ao vivo, mas também não sabia que “aquilo” se comia.
O jeito foi eu mesmo cometer o assassinato. Puxei pela
memória, lembrei como é que a preta velha lá de casa fazia quando eu era
menino, e lá fui eu pro altar dos sacrifícios. Lembrei do caso que ela contava,
do moleque que foi matar uma galinha, cortou a cabeça fora e depois ficou, em
riste, faca numa mão, cabeça de galinha na outra, todo sujo de sangue e a
galinha a correr pelo quintal, se debatendo e jorrando sangue pra todo lado.
Eu não. Fiz tudo direitinho. Prendi as pernas com o pé
direito, as asas com o esquerdo, segurei a cabeça com a mão esquerda e, com a
direita, manejando a faca, retirei algumas penas do pescoço. Bati com o lado da
faca pra “chamar o sangue”, e corri o fio da faca pela jugular (ou carótida,
sei lá) da penosa, aparando o sangue numa tigela. Só cometi um pequeno erro.
Não coloquei vinagre, pra evitar que o sangue coalhasse. Mas nada que a mulher
não pudesse dar um jeito, batendo o sangue coagulado, com vinagre, no
liquidificador. Se não ficou uma galinha ao molho pardo “ética”, pelo menos
ficou genérica ou similar.
Quando eu contei esse caso ao amigo, ele me disse que algo
parecido havia acontecido com ele, quando ele foi morar numa chácara. Ele
comprou umas galinhas e levou pra casa. Quando quis comer uma, ninguém queria
ou sabia matar. Apenas uma sua tia se prestou ao serviço, mas só se fosse de
revólver. Entendia ela que, de tiro, era “menos penoso” (olha a pena aí de
novo).
Entrou em casa, pegou um tresoitão na bolsa (que esta
violência anda desenfreada), e partiu para cometer o crime. Ela mirava, virava
o rosto pra não ver e apertava o gatilho: Bang, bang, bang. Era ela correndo atrás e a galinha na frente,
esbaforida, soltando penas e gritando: Có, có, (socorro) có, có.
Aí eu fiquei pensando. Nós estamos no topo da cadeia
alimentar. Somos carnívoros, reis do planeta, acima de todos os seres vivos da
Terra. E quando não houver mais galinhas, perdizes, pacas, veados, antílopes
etc., o que nós, predadores por natureza, iremos caçar?
Será que seremos predadores de nós mesmos, dos nossos
semelhantes? Já pensaram que talvez isto já esteja acontecendo?
NE: Escrita em 2002 e publicada no livro A Levada da Egua... & outras estórias (2004)
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