terça-feira, 16 de maio de 2023

O piloto cego que dirige carros de corrida a 180 km/h

Polar e Kantt inventaram uma linguagem de contato por meio da qual o copiloto pode dar instruções

O Toyota Corolla vermelho cruza a reta principal do circuito de La Chutana a 180 quilômetros por hora.

O ronco do motor de escapamento aberto rompe o silêncio do meio-dia nesta região árida, localizada a 44 quilômetros ao sul de Lima, no Peru.

Mais algumas voltas, e o carro estaciona nos boxes. O piloto retira o capacete e a balaclava. Suado, mas satisfeito, ele faz um sinal de joia para a câmera.

"Sou Pacho Kantt e sou cego".

Na verdade, ele também é surdo, conforme revelam os aparelhos auditivos acoplados a cada um de seus ouvidos.

Um homem ativo

Aos 48 anos, Kantt não vê nada. Só é capaz de perceber fontes intensas de luz. Nada mais. E ele sofre de surdez moderada a grave.

Tudo isso é resultado de uma doença congênita chamada retinite pigmentosa, que gradualmente obscureceu sua visão até que ele ficou cego em 2005.

Mas basta passar algum tempo com ele para perceber que a doença roubou sua visão, mas não sua energia.

"Quando fiquei cego, decidi que isso não iria me deter", disse ele à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol, ainda vestido com o macacão.

Ele teve que parar de dirigir na rua, o que ele lembra como "um golpe forte", mas seguiu em frente com sua vida, uma vida construída em torno de sua paixão.

"Desde criança, eu amo carros", diz ele.

De forma apaixonada, Pacho administra uma oficina em Lima e também se dedica à compra e venda de carros e caminhões.

Em seu escritório, ele pula de um telefonema para outro, fechando negócios, procedimentos e serviços com a ajuda do assistente de voz do seu telefone.

Pacho Kantt e Piero Polar têm uma parceria afinada

Mas a dúvida desaparece quando ele precisa entrar na área de trabalho dos mecânicos.

Ele se move com a ajuda de Piero Polar, seu amigo do peito. Ele caminha segurando no ombro dele.

Inseparáveis

Na verdade, o piloto originalmente era Piero. Quando ambos começaram a competir e vencer os "rallies" peruanos, Piero estava ao volante — enquanto Pacho e outras pessoas faziam parte da equipe que cuidava da mecânica, gestão, estratégia, etc.

Pacho lembra como também acabou sentado ao volante.

"Um dia, eu disse a Piero: 'Quero ir no seu carro'. Ele me disse: 'Claro, te dou carona quando você quiser'. Ele não tinha entendido. Tive que insistir: 'Piero, eu quero dirigir'."

O que começou como uma ideia maluca se tornou realidade após alguns testes. Piero sempre viaja atento no banco do passageiro, como copiloto, dizendo a Pacho o que fazer em cada momento.

Kantt quer que sua experiência inspire outras pessoas

A partir de testes no circuito, ambos acabaram desenvolvendo uma linguagem de gestos, porque com a adrenalina a mil e o barulho do motor, Pacho muitas vezes não ouve as instruções.

Então, por exemplo, quando Piero toca seu antebraço, Pacho sabe que deve frear. Se ele tocar duas vezes, deve frear com força. Há também recursos de emergência.

"Quando ele bate insistentemente no meu braço significa 'para, maluco, vamos nos matar'", diz Pacho, rindo.

Depois de muita prática, Pacho começou a fazer corridas de demonstração.

"Meu objetivo era mostrar às pessoas que não existe dificuldade grande o suficiente, que você sempre pode se superar", afirma.

De tanto percorrê-lo, Pacho conhece com a palma da mão o percurso de 2,3 quilômetros do circuito de La Chutana. O desafio seguinte foi completar uma de suas corridas de demonstração em um circuito desconhecido, o que finalmente aconteceu em uma visita recente ao Equador.

"Havia muito público e foi uma experiência impressionante para mim”, diz Pacho.

Recuperar a visão?

Sua volta mais rápida em La Chutana é de 1 minuto e 30 segundos. Embora, como ele diz, "não se trata de ir mais rápido, mas de transmitir às pessoas a mensagem de que você nunca deve parar, sempre pode seguir em frente".

Pacho é empresário, fanático por carros e pai. A filha de 15 anos é, segundo ele, sua outra paixão. Ela mora com ele desde que se separou da mãe dela — e ela tinha 4 anos.

Quando ela nasceu, Pacho já era cego.

"É a primeira coisa que vou olhar se algum dia recuperar minha visão."

Para realizar esse sonho um dia, Pacho precisa de um transplante de retina, um tratamento que ainda não está disponível.

Ele não perde a esperança de que a ciência possa um dia restaurar sua visão, mas uma coisa é clara para ele: "Não vou parar. Então tento todos os dias ser um pai melhor, uma pessoa melhor e um empresário melhor".

Por isso, mesmo sem ver o que está à sua frente, Pacho pisa fundo no acelerador.

BBC News Brasil

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