Vivendo para servir
Conheci ao longo da vida pessoas que parecem ter nascido apenas para servir ao próximo. Elas não tinham nada de especial, nenhuma capacidade extraordinária. Eram, e são, pessoas comuns, de todas as classes sociais, religiões, ideologias políticas, raças, enfim, tinham em comum apenas o prazer que sentiam em servir aos seus semelhantes. Algumas eram formadas, outras apenas o curso fundamental ou médios, e outras tantas eram até analfabetas, mas nem por isso burras ou ignorantes. E também me pareciam estar sempre muito felizes sendo quem eram e com o que faziam para viver. Só se explica isso do ponto de vista espiritual.
Quando
minha mãe adotiva se casou, levou para ajudá-la na lida diária da nova casa,
uma empregada que viera da zona rural para trabalhar na casa dos meus avós. Maria da Hora, era o
nome da figura. Baixinha, gordinha, alegre, uma simpatia. Quando eu cheguei os
três filhos do casal já eram rapazes, adultos, e no meu batizado ela me levou
enrolado numa toalha e entregou aos padrinhos na hora de batizar. Ela tinha o
maior orgulho disso, pois era a minha “Madrinha de Apresentação”, algo que nem
se usa mais, mas naquele tempo se dava muita importância. Como ela era a Babá
oficial da casa, e os meus irmãos a chamavam de Bá, era esse o nome pelo qual
eu a chamava também. Ela já estava velha quando eu cheguei, mas ainda lúcida e
forte, apesar de manter sempre um charuto apagado no canto da boca (aceso nas
horas vagas), e já sentia efeitos de catarata e hipertensão. Era “pau pra toda
obra”. Cuidava de mim, cozinhava para a família, lavava pratos e panelas,
limpava a cozinha e ainda encontrava tempo para cuidar das plantas. Era
benzedeira, daquela que tira mal olhado e até verrugas (acredite quem quiser). Vivia
alegre, contando estórias e cantando antigas canções. Nunca a vi reclamar de
nada. Deu seus últimos suspiros praticamente nos meus braços.
Na
família havia também “Tia Tereza”. Uma “Tia” por afinidade. Difícil não gostar
dela. Sempre pronta para socorrer quem necessitasse da sua ajuda. Cuidava dos
doentes, auxiliava na cura das suas doenças, cuidava de ferimentos, pancadas e
aplicava injeções sob receita médica. Sempre disposta a servir quem quer que
fosse, e sempre com um sorriso nos lábios. Um dia notei algo estranho no seu
braço e perguntei o que seria aquilo. Com a maior naturalidade e um riso nos
lábios, me disse que achava que poderia ser “um cancerzinho de pele”. A vida
nos afastou e não sei do que ela veio a falecer, mas eu tenho certeza que foi
com um sorriso nos lábios.
Não
conheci o Dr. Fernando Filgueiras, famoso médico em Salvador. Mas, de tanto
ouvir Bernardino (Pipiu) Bahia falar dele, era como se eu o conhecesse. Segundo
Pipiu, ele foi o que se pode chamar verdadeiramente de médico. Não dava a menor
importância para bens materiais nem posição social. Tinha um velho carro
importado que um paciente lhe dera de presente. Nenhuma “especialidade” porque
era especialista em tudo. Desde unha encravada, braço de menino travesso
quebrado, ou câncer generalizado. Trabalhava em Hospitais e, rico ou pobre, a
atenção era a mesma. Segundo Pipiu, certa vez o encontrou no pronto socorro do
hospital encanando o braço de um garoto. As mãos e as roupas sujas de gesso, e conversando
alegremente com o menino. “Naquele momento eu vi um verdadeiro médico, se
realizando em sua profissão”, comentou Pipiu mais tarde. Terminado o serviço,
saiu andando com Pipiu pelos corredores do hospital e, no trajeto, um jovem se
aproximou e lhe entregou um envelope dizendo que era o seu pagamento. Ele
recebeu enfiou no bolso sem abrir pra contar, e continuou andando e conversando
demonstrando total desapego a questões financeiras.
Gaguinho
era o apelido do meu amigo e compadre Lourival Costa Filho. Meu colega do curso
primário na escola da professora Elizete, sua tia. A afinidade foi tanta que
quase sempre onde um ia o outro ia também. Futebol, cinema, festas, viagens,
quase sempre estávamos juntos. Até quando ele se casou e foi morar em Salvador,
vez em quando eu ia lá ver ele. Ele voltou para Feira de Santana e aí a gente
fez um monte de coisa juntos. Antes, porém, houve algo que me fez aproximar
tanto dele. Eu fiquei doente, e como sempre acontece, os amigos foram me
visitar. Na primeira semana a casa estava sempre cheia. Na segunda, já não eram
tantos assim. E eu não censurava, porque a vida continua e as pessoas têm os
seus afazeres e suas vidas para viver. Com o tempo (eu fiquei seis meses
acamado), todos os amigos se foram, mas ele ia lá todos os dias para conversar
um pouco comigo. Mas isso não era um privilégio meu. Ele era assim com todo
mundo. Sempre solícito, sempre disposto a ajudar quem precisava. Não era rico, pelo
contrário, passava por muitas dificuldades, mas criou e educou os filhos e, se
fez mal a alguém, foi só a ele mesmo, porque o fumo e o álcool ceifaram sua
vida muito cedo.
Eu
fico me perguntando o que leva algumas pessoas a viverem mais para os outros do
que para si mesmas. É claro que eu sei a resposta, mas, como eu disse, só pode
ser explicado do ponto de vista espiritual. Materialistas jamais irão entender.
NE: Publicada em 2021
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