domingo, 7 de janeiro de 2024

       


                         *Quarto nº 80*                          Meus oitenta anos

          No octogésimo quarto, construído na casa-grande onde alojo meus ossos neste resto da existência, desencantei a fantasia da felicidade, costurada nas plagas sulistas, em tempos quando a afoita e inexperiente juventude escolhia as vestes. 

Graças aos périplos da Terra ao redor do Sol, a cada giro corresponde nova dependência na casa-vida, onde colecionamos de forma desordenada, imagens, vivências, sonhos, pretensões, projetos, de dados instantes, demorados ou fugazes, recentes ou longínquos, perpetuados em nossas lembranças.

     Coisas do tempo da maturidade quando, aqueles como eu, hóspedes de inumeráveis corredores e quartos na cauda do cometa, descobrem pelas frestas das paredes a finitude da vida e assumem a pretensão de dar vazão a seus sentimentos pela escrita. Navegam, portanto, no dito ‘estilo tardio’. Papo de velhos rememorando tempos pretéritos. Vã intenção de adiar o inadiável. Haja, pois, paciência por parte de seus leitores.   

O bicho pega quando é sabido – assunto no qual volta e meia derrapo – haver sob o mar das palavras, rios subterrâneos de águas nem sempre doces. Adito ser sábia a capacidade de nos interpretarmos. Qual o porquê de, em dado momento, evocarmos instantes não encontrados, até então, em nenhum dos escaninhos de nossa memória afetiva? 

Intento a resposta ao mirar o retrovisor e deparar-me comigo mesmo, vestido com a acima aludida fantasia da felicidade. Vejo um menino de 13 anos, calças curtas, enamorado. Rememoro os folguedos do cair das tardes, na calçada frente à casa onde morava, bola de meia disputando ‘gol a gol’. Quantas e quantas vezes, esfolávamos pés descalços contra as ásperas paredes de ‘cimento penteado’. Outras houveram, quando meu velho avô, chegado do trabalho - guarda-livros na entidade portuária da cidade de Rio Grande – de pijama listrado e acomodado em sua cadeira-preguiçosa, fazia roncar a bomba na cuia do chimarrão, rádio ligado na Ave-Maria de Júlio Louzada e, discretamente, nos vigiava. Ainda sinto no ar, o inesquecível aroma da erva mate fumegante. 

Éramos, à época, uns quantos – meninas e meninos, – a passar o tempo nas mais inocentes brincadeiras sem brinquedos do mundo. 

Ao entrar no quarto nº 80, pouca coisa cheirou a novo. De maior destaque, apenas ecos longínquos de velhas canções compassadamente escandidas, ferros em brasa a tatuar minha memória. 

Verdade, então longe estávamos de tempos das Damares da vida, mas reconheçamos, haver identificação cromática quanto aos papéis desempenhados. Aos recém-nascidos, homens, azul; mulheres, rosa. Meninos, calças curtas; meninas, vestidinhos recheados de anáguas engomadas. 

Ainda capto no ar um suave e primaveril perfume – falo do primeiro afeto, coração aos pulos– da afilhada do casal Dona Nazinha, doceira das antigas e Seu Alfredo, amanuense ferroviário. 

A citada garota chamava-se Vilma Maria Bassi Jerônimo. Três dias, apenas, separavam nossas idades. Primeira hipotética namoradinha. Andávamos pelos pródromos dos anos cinquenta. Eu já costumava brincar com as palavras – de forma inconsciente, é claro – alertava para o cacófato da junção dos nomes da menina de meus sonhos infantis. ‘Vilma Maria’ se convertia em ‘viu, mamaria’. O verbo mamar emergia, olhos centrados nos dois limõezinhos no peito de ‘Vilminha’. Outra leitura: ‘viu, minha?’ 

Aí se configuravam duas coisas. Na primeira, o pretenso garanhão em fase de formação; na segunda, o homem-possessivo, fruto de educação na qual a mulher, sempre submissa, seria propriedade do macho. Felizmente escafedi-me, sabe-se lá como, de tais situações. 

Enquanto divago, não percamos o fio da meada. 

O eclético grupo de meninos e meninas da vizinhança, horas passava em uma das cantigas de roda, cujos versos eram, mais ou menos, estes: 

Passa, passa, passará;

Passa, passa, passará;

O detrás ficará.

A porteira está aberta

Para quem quiser passar.

 

Passa por aqui,

Passa por ali,

Por aqui quero passar,

Por aqui eu passarei

E uma menina deixarei.

 

Qual delas será?

A da frente ou a detrás?

A da frente corre muito

E a detrás ficará.

             Eu, matreiramente, mãos dadas à Vilminha, cuidava em nos mantermos ao início do enrabichado desfile. Mais tempo juntos, é claro. 

E os anos? - Ah! Os anos-pássaros passaram a largos passos em passa, passa, passará de piscar d’olhos. Restam fragmentos despegados do imenso monólito de gelo rumo ao oceano das idades, somados a vazias solidões nunca preenchidas e a sonhados reencontros jamais acontecidos. 

O quarto 80, malgrado a fantasia, continua entulhado de tais blocos ainda não liquefeitos. Espero assim prossiga nos próximos dez anos, tempo de aprendizado indispensável à construção do quarto 90, para cuja inauguração, desde já, todos sintam-se convidados.



Nenhum comentário: