sábado, 20 de janeiro de 2024

 *Espelho mágico* 


Já estou acostumado às vicissitudes da vida
. Passo por elas, ao largo; vejo-as dissipadas nas brumas do passado, lépidas como no equador o dia se converte em noite e vice-versa. 

Infenso a elas, miro no espelho cabelos embranquecidos. Por detrás de minha imagem, miragens, apessoam-se etéreos vultos envoltos em experiências vividas por muitos de meus amigos. 

Acendo meu Alonso Robusto. Deixo vagar o pensamento, enquanto a doce fumaça - mágica e conselheira - inebria o ambiente. No vítreo painel, sensação de porta de entrada ao túnel do tempo, espicho um olhar curioso ao passado e constato o tempo haver transcorrido de distintas formas para uns e para outros. 

Nos cantos, amigos distantes, aos quais muito quero e dos quais pouco sei. Acima de meus ombros, os mais próximos, cada qual com história e sonhos realizados ou desfeitos. Vejo também amigos, de cuja convivência cedo fui furtado. Lembro, ainda, outros companheiros de jornada com os quais, assim como comigo, a vida foi generosa. 

Não me refiro a bens materiais: valem nada. Falo do avançar dos anos tendo, na justa medida, temperado momentos de ganhos com inesperados momentos de perdas. Falo do erguer as colunas do templo de Salomão. Da pacífica sabedoria do nada saber. Da terna alegria de plantar árvores, ter filhos e, volta e meia, escrever. Do especial prazer proporcionado pelos charutos-companheiros, da felicidade de contar com leitores de minhas crônicas. Falo de meu continuado trabalho ao longo da existência, hoje privilégio raro para os jovens e inalcançável para os velhos. 

A luz se apaga. Na penumbra, resta o brilho da ponta acesa de meu puro. Sopro-a ativando a incandescência. Braço estendido, giro velozmente o charuto no ar, descrevo círculos. Brinco qual criança encantada com os refulgentes arcos ígneos. e dentro de tais aros tento aprisionar imagens e lembranças ancoradas em marcos do passado. 

Trago você junto a mim e, enquanto desfruto sua generosa leitura e outra baforada de meu charuto, despeço-me.

Até o próximo encontro.

 

Hugo A. de Bittencourt Carvalho, economista, cronista, ex-diretor das fábricas de charutos Menendez & Amerino, Suerdieck e Pimentel, vive em São Gonçalo dos Campos – BA.

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