Candomblé na Pedra Ferrada
No início dos anos 70 o hoje populoso bairro da Pedra Ferrada não era mais que uma vaga menção que os viajantes faziam sobre um determinado local distante onde, numa bifurcação de uma estrada boiadeira, havia uma grande pedra marcada pro estranhos caracteres, como se tivesse sido ferrada com ferro em brasa. Tal lugar era conhecido como Pedra Ferrada. As pessoas da cidade acreditavam até mesmo que aquilo não passava de uma lenda ou de simples estórias, invenções de tropeiros e vaqueiros.
Naquela época eu namorava uma garota cuja mãe era adepta do Candomblé e vivia a fazer despachos, macumbas e outras quizumbas daquela religião. Um belo dia ela nos convidou a ir até a Pedra Ferrada, a fim de visitar o terreiro de um Pai de Santo seu amigo. Embora não fosse chegado a essas coisas do Candomblé, a coisa nos animou. Mais pela curiosidade de conhecer o lugar do que pelas macumbas da minha sogra.
A caravana foi formada, dividida em dois carros, com cerca de dez pessoas. Entre elas, o meu amigo e parceiro de farras, o hoje renomado engenheiro Rafael Pereira, um primo da minha namorada, meio lelé da cuca, de nome Leolindo, mas que, obviamente, chamávamos de Léo, e mais alguns filhos, filhas, genros e noras da minha sogra.
O problema é que Léo era esquizofrênico, cheio de estranhas atitudes, com rompantes de fazer rir ou chorar quem estivesse por perto. Coisas assim como entrar num restaurante do hotel Nacional, em Recife, puxando um bode pela corda. Ou então criar uma imensa cobra num quarto vago na casa de sua avó, assustando a velha que passava dia e noite a rezar, grudada num terço, com o coração aos pulos, a cada vez que a cobra sibilava lá no quarto.
O certo é que, com Léo, nada era previsível. E lá fomos nós, numa noite de verão de uma sexta-feira, conhecer a Pedra Ferrada, que terreiro eu já conhecia vários. Como de praxe, onde tem muita mulher reunida, a saída atrasou e nó chegamos ao terreiro quando a função já havia encerrado. Eu não dei muitos tratos à bola, até porque me bastava estar ali naquele fim de mundo, aonde nem notícia ruim chegava, sem energia, com um céu cheio de estrelas e o luar a pratear os campos, sorvendo uma deliciosa caipirinha oferecida pelo Pai de Santo. Isso sem se falar da emoção de conhecer de perto a famosa pedra, que tantas estórias gerava, povoando a imaginação de tantos quantos dela ouviram falar.
Minha sogra não parava de reclamar do atraso na saída, que a fez perder a sessão. Mas o Pai de Santo não se fez de rogado. Chamou os filhos e filhas de santo e ordenou que reiniciassem o baticum, em homenagem aos ilustres visitantes. Devo confessar que é um ritual bonito. Aquelas mulheres com seus vestidos rodados, cheios de babados, seus colares e pulseiras coloridos, cabelos presos com lenços rendados e coloridos, formavam um conjunto bonito de se ver.
Tinha ainda uns atabaques enormes onde os filhos de santo, trajando apenas calças de capoeiristas, estilo pescador, batucavam num ritmo frenético, acompanhando as canções entoadas pelas filhas de santo, que dançavam em roda. A cada sinal do Pai de Santo, a roda parava e uma das filhas de santo “puxavam” uma outra canção da seguinte forma: Começava sempre com um EEEEEEEEEE..., bem esticado, com os tambores batendo aceleradamente, em uníssono, e depois então iniciava-se a nova canção.
Postados de costas para uma janela que dava para o terreiro da casa, eu e Rafael ficamos ali a observar todo aquele movimento, às vezes acompanhando com palmas o ritmo das filhas de santo. E era um tal de “araruê”, “ o pavão é um pássaro bonito”, “vadeia dois, dois” e etecetera & tal. Tudo canções do Candomblé. E a gente ali, molhando o bico, beliscando um tira-gosto e apreciando a festa.
Estava tudo muito bem, até que Léo resolveu entrar na roda e dançar acompanhando as filhas de santo. Eu comentei com Rafael: “Isso ainda vai acabar mal”. Não demorou muito e aconteceu o que temia. Num dado momento em que o Pai de Santo sinalizou para passar a uma outra canção, quem entrou puxando foi Léo: “EEEEEEEEEE.... E o pessoal do batuque não se fez de rogado, segurou firme, esperando Léo dar início à uma nova canção. E ele mandou ver:
- Eu sou a mosca que pousou na sua sopa...
Tudo parou, as filhas de santo olhavam Léo, assustadas, com os olhos arregalados, exclamando, incrédulas: “Oxente! Oxente!
Eu e Rafael pulamos a janela e fomos rir no meio do mato, com medo de que o pessoal pudesse se zangar também com a gente.
NE: Crônica publicada no livro Sempre Livre (2010)
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