segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Crônica de segunda

 

A Boa Romaria

                 Esse negócio de “crente” ficar batendo de porta em posta, tentando empurrar goela abaixo dos outros as suas convicções religiosas, ainda vai dar pano pra manga. Eu fico me perguntando por que, Deus louvado, essas pessoas largam suas famílias, seus afazeres, pra ficar de porta em porta azucrinando a paciência dos outros. Se for pela simples pregação, para isso existem os templos. Quem buscar o conforto espiritual, respostas para suas dúvidas religiosas ou mais conhecimento religioso, vai aos templos participar das celebrações, ouvir pregações, orar e até mesmo, se julgar conveniente, confidenciar e se aconselhar com pastores da sua confiança.

         O lar é o reduto sagrado das famílias. Visitas indesejáveis e inoportunas geralmente são expulsas, em alguns casos, até com violência. O lar é o repouso do guerreiro e da guerreira. É também o lugar onde a família pode conversar à vontade, trocar ideias, fazer gostosas refeições, ouvir música, ver TV, ler e até mesmo orar unida ou individualmente. Enfim, é o lar, o templo sagrado da família e não deve ser profanado.

         Eu mesmo (acho até que já contei esta estória) certa vez, esgotados todos os argumentos civilizados para um acordo, enchi de balas o alto falante de uma igreja próxima a minha casa que os pastores insistiam em manter ligado até altas horas, em algo volume. Não teve jeito. Quando vi que o diálogo já não resolvia, peguei emprestado um rifle 22 de um amigo e, durante o dia, quando a igreja estava fechada, subi no telhado de minha casa e, de lá, mandei 15 balas no alto falante. Ele trocaram por outro que eu igualmente furei todo. Eles desistiram.

         “Boa romaria faz, quem em sua casa fica em paz”, diz a sabedoria popular. E foi justamente por não ficar quieto em sua casa e sair de porta em porta azucrinando os outros com suas pregações chatas, que um pastor se deu mal. Foi lá na Espanha, em Madrid, onde um amigo meu, artista feirense, foi passar uma temporada. Estava ele na maior solidão madrilena, quando lhe bateram à porta do apartamento. Era um pastor protestante.

         Ele andava se sentindo tão só que deixou que o sujeito entrasse só pra ter com quem conversar um pouco, que de religioso ele não tem nada. Como ele é muito culto e muito bem informado, a conversa correu lisa e agradável. Talvez por isso, o pastor achou que tinha fisgado uma alma e marcou outra conversa para outro dia. O pior (ou melhor?) é que, na noite anterior ao dia marcado, nosso amigo recebeu alguns amigos no apartamento, e fizeram uma orgia. De manhã cedo, o quadro era dantesco. Gente nua espalhada por tanto canto, um cheiro forte de fumo, bebida e sexo, pairava no ar. Duas lésbicas ainda dormiam abraçadas no sofá da sala, com suas “aranhas” devidamente entrelaçadas, num velcro só.

         De repente, alguém toca a campainha. Ele já até tinha esquecido do encontro com o pastor. Levantou-se meio sonolento, enrolou uma toalha em torno da cintura e foi atender a porta. Quando abriu a porta e o pastor deu de cara com aquela cena, gritou: “Vade Retro! Satanás esteve nesta casa!” Um garotinho que acompanhava o pastor tentava enfiar a cara porta adentro pra ver o que estava acontecendo e o pastor o afastava, tentando tapar seus olhos com uma das mãos, enquanto  meu amigo tentava explicar, se é que existia alguma explicação convincente para o pastor. Uma confusão dos diabos, por assim dizer.

         Um outro caso envolveu um nosso colega, jornalista. Segundo ele, todos os domingos, quando ele pegava o jornal e se sentava numa poltrona da sala do seu apartamento para ler, uma senhora, já idosa, batia à porta. Era uma destas “crentes” que cismara de lhe converter à sua religião. Educado e gentil, ele explicava que não estava interessado, porque ele é agnóstico, que não gosta de discutir crenças e outras razões. Mas a velhinha insistia.

         E insistiu tanto que começou a chatear e a tirar o rapaz do sério. Quando ele viu que a velhota não estava nem aí pros seus argumentos, ele decidiu: “Quem vai resolver essa parada é o meu lado moleque”. E assim foi. Ele tinha guardada em casa uma fantasia de diabo, vermelha, com chifre, tridente e tudo o mais, que houvera comprado em Miami para ir a uma festa à fantasia. Mas, ele engordou desde então e a fantasia ficou tão justa  que parecia grudada na pele.

         Chegado o domingo, ele se preparou. Vestiu a fantasia, pegou o tridente com ponta de espuma dura, e ficou a espera. Quando a velhota tocou a campainha, ele abriu aporta e já foi gritando: “Eu não já disse pra você não me incomodar?” A pobre mulher balbuciou alguma coisa, fez o sinal da cruz umas três vezes, e quando encontrou pernas pra correr, saiu descendo as escadas de dois em dois degraus, com ele no seu encalço, espetando-lhe as nádegas com a ponto de espuma do tridente e só parou quando chegou ao meio da rua.

         Só assim encontrou a paz desejada.  

 

NE: Crônica publicada no livro Sempre Livre (2010)

        

Nenhum comentário: