domingo, 5 de maio de 2024


Bons Olhos 

         Se, entre as inoportunas agruras da longevidade, ressalta-se a negativa do cardiologista em conceder autorização para programados procedimentos cirúrgicos - catarata, endoscopia, cistoscopia -  o  primeiro deles, para me devolver a boa visão do olho sinistro, posto que o destro, foi-se às calendas; o segundo, para pesquisar eventuais causas de um persistente refluxo com repercussões até na voz e o terceiro, rotina trimestral, para acompanhar um câncer na bexiga, por duas vezes raspado, mas que reaparece, provavelmente tomado de amores por minha urina, rica em medicamentosos sabores. 

        Estivesse a cardiológica negativa estribada, apenas nos exames requeridos, tudo bem. Quer mais. Determina, da parte do neurologista, um relatório onde a anestesia não seja vetada. Como se sabe, manda a regra que pacientes alvo de acidentes isquêmicos, mesmo breves e sem consequências, devam permanecer em observação por seis meses. Meus dois, em mesmo dia, são mais recentes.

     Envolto pois, ora percorro a insana sina das 14 estações de exames e remarcações. Complementados, volta e meia, com alguns laçaços - inesperados surtos alérgico-dermatológicos.

          Assim, mesmo não me considerasse participante da geração “ageless”, teria razões para tanto. Sobram-me motivos para me divertir, ao recordar finado esculápio amigo, Dr. Alício Peltier de Queiróz o qual, do alto de seus noventa e tantos anos, tratava aos danos corporais, por “mimos da senilidade”.

     Com a perda da visão útil do olho direito e a progressiva redução da capacidade de leitura do olho esquerdo, posso afirmar, convicto, não mais ver a vida como a via.

        O olhar que de per si, em tudo se intromete, ora elogia, ora reflete o que não lhe compete, aos poucos, teme a própria luz do dia, graças uma fotofobia. Devido à dita, hoje melhor convivo ‘à luz difusa de um abajur lilás’. Pior ainda, a visão do olho ‘bom’, talvez pelos azares de haver olhado mais do que devia, esconde-se atrás de um nevoeiro denso e, de quebra, por ter perdido a noção de profundidade, requer meus cuidados ao despejar algo em um copo; ao tentar abrir uma fechadura; em distinguir degraus ou buracos no caminho, ao digitar teclas das maquinetas do cartão de pagamentos, coisas assim.

       A longínqua paisagem de densa bruma em volta de um morro lindo, poderá corresponder a enorme caminhão a poucos metros de distância, vindo.

Por isso, após mais de sessenta anos ao volante, abdiquei de ser motorista. Mais uma dependência na vida.

       Da mesma forma - a coisa vai mais longe –, em tempos nos quais tudo via, em tudo me intrometia.

     Agora, quando a fonte para impressão deva ser 20 ou mais; uma lupa empunho para ler jornais; alguns livros, é provável, não lerei jamais; uma catarata me inunda tal qual resquícios de um sentido choro e ante a ameaça de não mais ler o que escrevo, sou compelido a abandonar, enquanto é tempo, os cuidados tidos – por vezes incompreendidos - com as produções de meus companheiros da jornada literária. Continuarei zelando do quanto até aqui cuidei, exceção feita às revisões de textos.

    Todavia, também não deixarei de produzir, enquanto possa. Sucedendo as duas séries de crônicas - “Fumaças Mágicas” e “Palavras ao Vento” - inauguro esta nova, intitulada “Dedais de Prosa”. Por quanto tempo persistirá? Sei lá!

    Mesmo assim, ratifico e assino: não mais vejo a vida com bons olhos.

 

 Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941) economista, cronista, é autor do livro virtual

          Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,

participa do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos - Ba

http://livrodoscharutos.blogspot.com


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