terça-feira, 14 de maio de 2024

Segunda é dia de CRÔNICA: A última vez que foi hoje

A primeira vez que foi hoje faz sessenta e três anos. Era um segundo domingo de maio, quando dei luz a minha mãe. Não posso negar que foi um de meus maiores acertos, estratégia de sobrevivência providencial, uma carta na manga contra as intempéries do reino humano, selvagem e ameaçador. Algo assim como arrebentar a boca do balão, resolver o Teorema de Fermat, descobrir o Bóson de Higgs - a partícula de Deus - que está em toda parte e é difícil definir.

O dia tinha começado pontualmente a meia-noite – os candeeiros da casa ainda não estavam acesos - quando o evento se deu, em estreia monumental, sem ensaio prévio. Isso mudou o ritmo de tudo, pois não houve mais relógios, deslocou a logística divina de seus eixos para meus planos, contrariou a finitude natural de toda cria desamparada.
Nos séculos seguintes - os mais longos da história - sim, séculos, pois o tempo passou a se mover no ritmo de meu choro e fome, longevidade do sono e falta dele, febres de todo tipo. Em nosso mundo escasso era possível ver no rosto de minha mãe que essas infinitas ações momentâneas lhe custavam anos. O dia já não se marcava pelo minguar da lua ou ascensão do sol, mas pelo desenrolar dos batimentos de nossos corações em comum.
Desde então, um dia nunca foi depois do outro, pois uns duravam o giro da terra; outros, o tempo das coisas secarem nos varais. A longa estiagem das coisas secando nos varais. O interminável tempo que esperamos algo secar nos varais antes de tocar em frente. O tempo da poeira de luz de uma estrela morta surgir; o recife de coral viver no fundo do oceano; o delivery entregar.
Quando completamos os primeiros mil anos de nossas costuras eu ainda engatinhava. Nos últimos, foi a vez dela. Entre meu exílio de chegada e o dela de partida a eternidade desse amor.
Hoje não comprei presente, não escrevi nenhuma ridícula declaração de amor, não almocei na casa dela. Não vi flores em maio. Ela não esperou com a alegria de me ver, a mesa posta, o doce de tomate pronto. Depois de infinitos dia das mães iguais, essa foi a primeira ocasião em que não nos encontramos. A última vez eu nem havia nascido. Como hoje.

𝗖𝗲𝘀𝗮𝗿 𝗢𝗹𝗶𝘃𝗲𝗶𝗿𝗮 - Tabaréu, feirense, médico, professor, apaixonado por palavras, pessoas e a vida. Sou de mato, vinhos, cafés, pratos, prosas - falada e escrita. Essa tem sido minha receita.

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