A casa, decorada na entrada por uma faixa de azulejos pintados, fica em uma rua larga e tranquila, dessas que cabem mundos. O portão sem tranca soa anacrônico ou saudosista.
- Resistência em aceitar o medo- diz o dono.
A luz é esmaecente. Um grande jardim margeia a lateral e acaba em uma mangueira que se ergue gigante, atemporal , dominante. A direita, o estúdio de pintura de Nanja- mulher do poeta. A esquerda, o estúdio menor, embora isso nada queria simbolizar. Na varanda de entrada há uma rede- dolce far niente- de quem cria ou chega. Ao fundo da sala, uma estante branca, simples, com discos de vinil, livros de filosofia, biografias, poesia. O inventário dos caminhos do morador.
Ao centro, uma mesa, austera, com uma tela de computador que contrasta com o passado. Em frente a mesa uma cadeira de balanço onde senta-se o poeta. Gigante, atemporal, dominante. Entre as duas janelas vizinhas há um baú antigo- meu assento preferido- e quatro ou cinco cadeiras de forma e idades diferentes.
É nesse ambiente que há quarenta anos o poeta Antônio Brasileiro – criador do magistral grupo Hera de poesia- recebe convidados, semanalmente, para conversas e vinhos. Mais conversas que vinhos; às vezes, ao contrário. Autores famosos, alguns em busca de fama ou aprovação- nem sempre obtida. Cada um vai por sua conta e risco. Poetas, historiadores, músicos, filósofos, enfim, de tudo que em se plantando na cultura ela dá. Vários jovens e outros nem tanto.
A trupe é variável, exceto pelo grande poeta Roberval Pereyr, mobília fixa. O outro esteio. Ocupa sempre a cadeira única da mesa. Protagoniza os confrontos mais duros, os embates mais densos, e, no entanto, as admirações mais profundas. Juracy Dórea- autor da identidade cultural de Feira- já ocupou cadeira cativa, mas atualmente tem frequência variável. Na plateia regular tem Antônio Carlos, Wellington, Nunes, Idmar, Paulo, e, eu- sabe-se lá porque me aceitaram. Além de nós, só um sariguê, que com certa regularidade fica espiando tudo do jardim.
Nada disso aconteceria, bom que se diga, se Nanja- musa eterna-não desse aval e guarida para tamanha desordem semanal. Além de pão e vinho, há leitura de poesia, discussões filosóficas, salvação do mundo, piadas de quinta série, afinal, demasiadamente humanos.
Nesse Império da Mangueira- como denominei- polêmicas, por vezes, se exacerbam, mas é possível vibrar na sintonia mais fina e bela do que já produzimos.
Às vezes, quando saímos, com a felicidade que o vinho, a poesia, as amizades, costumam produzir, encontro o olhar incrédulo do sariguê. Imagino-o chegando em casa.
- Você estava observando-os de novo?
- Sim, mulher, eles bebem, discutem, recitam, depois voltam a fazer a mesma coisa na semana seguinte. Não entendo.
-Descanse, não é hoje. Ninguém consegue explicar o humano.
𝗖𝗲𝘀𝗮𝗿 𝗢𝗹𝗶𝘃𝗲𝗶𝗿𝗮 - Tabaréu, feirense, médico, professor, apaixonado por palavras, pessoas e a vida. Sou de mato, vinhos, cafés, pratos, prosas - falada e escrita. Essa tem sido minha receita.
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