segunda-feira, 8 de julho de 2024

A guilhotina

Dolores Urtiga não tinha o emprego desejado – quem tem o desejado perde serventia, dizia – mas fez do que tinha um lugar respeitado. Ou temido. Era articulista em um jornal – em extinção, como eu, ironizava – e suas críticas provocavam a ira dos ofendidos e o aplauso dos aprovados-raros.

- Ela faz jus ao nome, diziam as más-línguas.

Reagia com a soberba indiferença de quem sabe que não se deve ser complacente com o mérito, a qualidade e vinhos de baixa categoria. Dirigiu-se ao escritório para assistir ao documentário que abordaria na coluna: O lugar da mulher na nova música brasileira: liberdade e empoderamento.

O título sugeria uma dessas teses oportunistas feitas com verbas públicas nas Universidades que soam mais como panfletos do que conhecimento, pensou, mas foi em frente.

Ainda que preparada não conseguiu controlar o impacto das cenas iniciais: cantora de voz até correta e corpo bonito dançava – ou simulava copular – em um biquini feito com fita isolante enquanto emitia sons guturais e três palavras na língua culta – sim, não podia negar que haviam três – ainda  que fossem pornográficas. O close dos detalhes do corpo tentava acompanhar a aceleração dos instrumentos. Soava provocativo. Ou vulgar, a depender dos pudores de cada um. A coreografia, tomadas de cena, ritmo, eram os protagonistas do clipe. Pouco – ou nada – cabia a elaboração harmônica, letra, melodia.

O documentário seguia por bailes onde predominava a subespécie MC, com vasta ornamentação de ouro e tatuagens, descrição dos órgãos genitais femininos e seus usos mais diversos – por usuários em série – e uma vastidão de adjetivos que não fariam feio em uma briga de cabaret: cachorras, vagabas, cadelas, piranhas, ordinárias, sacanas, putas. Nada que não pudesse enquadrar na Lei Maria da Penha ou Estatuto do Menor.

A seguir outra cantora fazia apologia a maconha desfilando em uma plantação verdinha. Por fim, o vídeo mostrava o show de uma diva regiamente paga com dinheiro público para cantar em playback enquanto simulava sexo de várias maneiras.

- O diretor tentava mostrá-la como inovadora e iconoclasta embora soasse datada e rasa.

Sem entender o empoderamento do título, Dolores, lembrou da frase da girondina – e influencer – Manon Roland antes da decapitação: Ó Liberdade, quantos crimes cometem-se em teu nome!

Dirigiu-se ao computador e digitou o título da coluna: A falta que a guilhotina faz!

PS: esse é um exercício de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

 𝗖𝗲𝘀𝗮𝗿 𝗢𝗹𝗶𝘃𝗲𝗶𝗿𝗮 - Tabaréu, feirense, médico, professor, apaixonado por palavras, pessoas e a vida. Sou de mato, vinhos, cafés, pratos, prosas - falada e escrita. Essa tem sido minha receita. 

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