sexta-feira, 26 de julho de 2024

𝗜𝗡 𝗩𝗜𝗡𝗢 𝗩𝗘𝗥𝗜𝗧𝗔𝗦


Era um ambiente de temperatura controlada e vaidades sem medidas. Cada uma exibia seu rótulo como um pedigree, atestando valor e raridade.

– Sou a mais cobiçada desta adega. Champagne como eu testemunha casamentos, sela histórias de amor, desliza em corpos nus. Napoleão já dizia que me merecia na vitória e precisava de mim nas derrotas.

– Deve ser por isso que morreu louco naquela ilha. Quanto mais alto, maior a queda, branquela insossa – disse um Zinfandel californiano, identitário, na prateleira superior.

– Alto lá! Sou branco, perfeita companhia para um almoço com frutos do mar, mas não aceito descriminação por cor. Quantas uvas precisam morrer para entenderem que harmonizar é ser soberano?

– Concordo plenamente – gritou o subestimado 𝑟𝑜𝑠𝑒́.

– Porque não te calas? Tu és um sonho de verão. Nem sabes a que gênero pertences. Eu sou o verdadeiro vinho. Um Petrus. Cobiçado como cartão ilimitado, raro como virgindade, feito na margem direita do Gironde. Sabe o que é isso?

– Não me impressiona. Eu, Romanée-Conti, tenho sangue tinto, sou o absoluto objeto de desejo. Tornei-me uma lenda. Até certo presidente operário celebrou sua primeira vitória comigo.

– Tá explicado ter dado no que deu. Nem sempre quanto mais velho, melhor. Ficam avinagrados e difíceis de engolir.

– Vocês são propaganda enganosa. Merlot e Pinot Noir são como saquinhos de chá reusados. Consumidor raiz gosta da minha cepa.

– Quem é você, pretensiosa, para querer derramar meu mungunzá?

– Sou Cabernet Sauvignon. Tenho aquilo que as mulheres gostam: potência e persistência.

– Então sua comparação é com outro produto azulado. Mude para o armário de remédios.

– Inimigas eu trato com tiro, porrada e bomba. Os cinco 𝑝𝑟𝑒𝑚𝑖𝑒𝑟 𝑐𝑟𝑢 franceses, supertoscanos italianos, o melhor dos EUA e da América do Sul são minha biografia. No velho ou novo mundo eu reino.

– Não confunda curtida de rede social com nobreza. Não é dando golpe que se chega ao poder, como já deve ter visto em exemplos infames por aí.

– Quem é você, menino amarelo?

– Prazer, sou Tokaji, o “vinho dos reis e rei dos vinhos”. O único com nome do Palácio de Buckingham.

– Ah, vinhozinho de sobremesa feito de fungo e uva podre, se achando influencer.

– Minha podridão é “podridão nobre”.

– Então, fique lá com seu rei Tampax.

– Santo Baco, perdoai-os. Não sabem o que exalam. São secos. Ouçam e decantem: para sermos especiais, não cabe sermos excludentes, soberbos. Nosso valor é ser parceiro do outro, dos desiludidos ou apaixonados. É estar na boca dos humildes, ser inclusivos, ensinar os jovens a resistir, repelir preconceitos, ajudar a tornar mais leve o caminhar da humanidade.

Espantados, todos da adega olharam o garrafão da prateleira inferior que falava de forma doce e suave.

– Quem é você para nos dar lição de moral?

– Sou o mais popular: o Sangue de Boi!

𝗖𝗲𝘀𝗮𝗿 𝗢𝗹𝗶𝘃𝗲𝗶𝗿𝗮 - Tabaréu, feirense, médico, professor, apaixonado por palavras, pessoas e a vida. Sou de mato, vinhos, cafés, pratos, prosas - falada e escrita. Essa tem sido minha receita.

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