– Sou a mais cobiçada desta adega. Champagne como eu
testemunha casamentos, sela histórias de amor, desliza em corpos nus. Napoleão
já dizia que me merecia na vitória e precisava de mim nas derrotas.
– Deve ser por isso que morreu louco naquela ilha. Quanto mais alto, maior a queda, branquela insossa – disse um Zinfandel californiano, identitário, na prateleira superior.
– Alto lá! Sou branco, perfeita companhia para um
almoço com frutos do mar, mas não aceito descriminação por cor. Quantas uvas
precisam morrer para entenderem que harmonizar é ser soberano?
– Concordo plenamente – gritou o subestimado 𝑟𝑜𝑠𝑒́.
– Porque não te calas? Tu és um sonho de verão. Nem
sabes a que gênero pertences. Eu sou o verdadeiro vinho. Um Petrus. Cobiçado
como cartão ilimitado, raro como virgindade, feito na margem direita do
Gironde. Sabe o que é isso?
– Não me impressiona. Eu, Romanée-Conti, tenho sangue
tinto, sou o absoluto objeto de desejo. Tornei-me uma lenda. Até certo
presidente operário celebrou sua primeira vitória comigo.
– Tá explicado ter dado no que deu. Nem sempre quanto
mais velho, melhor. Ficam avinagrados e difíceis de engolir.
– Vocês são propaganda enganosa. Merlot e Pinot Noir
são como saquinhos de chá reusados. Consumidor raiz gosta da minha cepa.
– Quem é você, pretensiosa, para querer derramar meu
mungunzá?
– Sou Cabernet Sauvignon. Tenho aquilo que as mulheres
gostam: potência e persistência.
– Então sua comparação é com outro produto azulado.
Mude para o armário de remédios.
– Inimigas eu trato com tiro, porrada e bomba. Os
cinco 𝑝𝑟𝑒𝑚𝑖𝑒𝑟 𝑐𝑟𝑢
franceses, supertoscanos italianos, o melhor dos EUA e da América do Sul são
minha biografia. No velho ou novo mundo eu reino.
– Não confunda curtida de rede social com nobreza. Não
é dando golpe que se chega ao poder, como já deve ter visto em exemplos infames
por aí.
– Quem é você, menino amarelo?
– Prazer, sou Tokaji, o “vinho dos reis e rei dos
vinhos”. O único com nome do Palácio de Buckingham.
– Ah, vinhozinho de sobremesa feito de fungo e uva
podre, se achando influencer.
– Minha podridão é “podridão nobre”.
– Então, fique lá com seu rei Tampax.
– Santo Baco, perdoai-os. Não sabem o que exalam. São
secos. Ouçam e decantem: para sermos especiais, não cabe sermos excludentes,
soberbos. Nosso valor é ser parceiro do outro, dos desiludidos ou apaixonados.
É estar na boca dos humildes, ser inclusivos, ensinar os jovens a resistir,
repelir preconceitos, ajudar a tornar mais leve o caminhar da humanidade.
Espantados, todos da adega olharam o garrafão da
prateleira inferior que falava de forma doce e suave.
– Quem é você para nos dar lição de moral?
– Sou o mais popular: o Sangue de Boi!
𝗖𝗲𝘀𝗮𝗿 𝗢𝗹𝗶𝘃𝗲𝗶𝗿𝗮 - Tabaréu, feirense, médico,
professor, apaixonado por palavras, pessoas e a vida. Sou de mato, vinhos,
cafés, pratos, prosas - falada e escrita. Essa tem sido minha receita.
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