O drama da música brasileira
Há alguns dias
publicamos uma crônica sobre a pobreza da música popular brasileira. Pensando
como a nossa música já foi rica, me lembrei de uma obra do cantor e compositor
caipira Murilo Alvarenga que, juntamente com o parceiro M.G. Barreto, criou uma
pérola da MPB: O Drama da Angélica. É uma música de versos simples carregados
de humor. Relata a morte de uma mulher provocada por um erro de um farmacêutico
atrapalhado.
A curiosidade sobre a música, além do humor, é que ela é composta por versos acabados com palavras proparoxítonas. Para quem acha que é fácil, só temos conhecimento de mais uma música composta dessa forma. Trata-se de Construção, de Chico Buarque de Holanda, lançada 20 anos depois (1971) de O Drama da Angélica que foi gravada em 1949, e que mereceu elogios da crítica nacional. Para muitos só Chico poderia fazer isso.
Como bem descreveu em um
artigo o professor José
Paes de Almeida Nogueira Pinto, “ a
genialidade de ambas as canções não está relacionada somente à presença das
proparoxítonas, é muito mais do que isso.
Chico, em alguns poucos minutos, descreve o cotidiano de um
operário da construção civil, com todas as suas mazelas e desencantos. As
proparoxítonas funcionam como tijolos em uma construção mágica e trágica, em
uma tensão crescente embalada pelo também genial arranjo do maestro Rogério
Duprat.
Alvarenga e Ranchinho, por sua vez, nos remetem àqueles “causos”
que ouvíamos de nossos pais, histórias das quais ansiávamos por conhecer o seu
final, mesmo que trágico. Uma verdadeira novela, arrebatadora, com idas e
vindas, em uma interpretação perfeita da dupla. Ao final, não há como não
gargalhar, a despeito do “Drama de Angélica”.
Chico é um intelectual, com sólida formação cultural. Alvarenga
é de origem humilde, iniciou a carreira em circo e se tornou símbolo da música
caipira. Tão diferentes e tão geniais”, conclui.
Para quem não se lembra, Alvarenga teve
muitos parceiros, entre eles Ranchinho que se apresentou inúmeras vezes no
programa Sr. Brasil ao lado de Rolando Boldrin, interpretando O Drama da
Angélica. Reparem na letra: são 12 conjuntos de textos e cada um deles tem oito
versos, sendo que, em praticamente todos eles, as últimas palavras são
proparoxítonas.
Drama de Angélica (1949) – Murilo Alvarenga e M.G. Barreto
Ouve meu cântico
quase sem ritmo
Que a voz de um tísico
magro esquelética
Poesia épica
em forma esdrúxula
Feita sem métrica
com rima rápida
Amei Angélica
mulher anêmica
De cores pálidas
e gestos tímidos
Era maligna
e tinha ímpetos
De fazer cócegas
no meu esôfago
Em noite frígida
fomos ao Lírico
Ouvir o músico
pianista célebre
Soprava o zéfiro
ventinho úmido
Então Angélica
ficou asmática
Fomos ao médico
de muita clínica
Com muita prática
e preço módico
Depois do inquérito
descobre o clínico
O mal atávico
mal sifilítico
Mandou-me célere
comprar noz vômica
E ácido cítrico
para o seu fígado
O farmacêutico
mocinho estúpido
Errou na fórmula
fez despropósito
Não tendo escrúpulo
deu-me sem rótulo
Ácido fênico
e ácido prússico
Corri mui lépido
mais de um quilômetro
Num bonde elétrico
de força múltipla
O dia cálido
deixou-me tépido
Achei Angélica
já toda trêmula
A terapêutica
dose alopática
Lhe dei em xícara
de ferro ágate
Tomou num fôlego
triste e bucólica
Esta estrambólica
droga fatídica
Caiu no esôfago
deixou-a lívida
Dando-lhe cólica
e morte trágica
O pai de Angélica
chefe do tráfego
Homem carnívoro
ficou perplexo
Por ser estrábico
usava óculos
Um vidro côncavo
o outro convexo
Morreu Angélica
de um modo lúgubre
Moléstia crônica
levou-a ao túmulo
Foi feita a autópsia
todos os médicos
Foram unânimes
no diagnóstico
Fiz-lhe um sarcófago
assaz artístico
Todo de mármore
da cor do ébano
E sobre o túmulo
uma estatística
Coisa metódica
como Os Lusíadas
E numa lápide
paralelepípedo
Pus esse dístico
terno e simbólico
“Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!”
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