domingo, 28 de julho de 2024

Fugaz olhar retroativo


        Enquanto desfruto o prazer de me desdobrar em letras, retorno, à velocidade da luz, a maio de 1965. No presente 2023, cinquenta e oito anos transcorreram de minha chegada à Cidade da Baía.

Procedente de uma vida, geograficamente, limitada ao eixo Rio Grande – Pelotas – Porto Alegre, azeitada por dois anos em São Paulo, abriam-se para mim, cortinas de um novo mundo. Um choque cultural, guardadas as proporções, semelhante ao provocado nos lusitanos quando aqui aportaram há cinco séculos

Comecei a vivenciar comportamentos incomuns em meu mundo anterior. Casais à luz do dia, despreocupados, esfregando-se açodadamente na muralha beira-mar do Porto da Barra. Trabalhadores recém-iniciados nas lides industriais, muitos deles por não dominarem o uso de garfo e faca, ocultavam-se para se valer das mãos como talheres.

Ainda não havia motéis. Quem fosse amante da noite, ao embalo de Pata-Pata - canção interpretada pela sul-africana Miriam Makeba (1932-2008) - e se deixasse levar pelas tentações noturnas, mantinha só ou em sociedade, lugar apropriado para os embates do final das noitadas. Não sem antes passar pelo Mercado das Sete Portas, para refastelar-se com um saboroso sarapatel. Tudo era deliciosamente divertido. Gravatas de seda, algures esquecidas. Direção perigosa. Sobrevivemos.

Acabava-se o dia, ou melhor, a noite, curtindo o raiar da aurora em meio aos jardins do alto de Ondina, a ouvir pássaros, recitar Fernando Pessoa, amorosamente enamorados sobre a relva umedecida pelos frescores da noite que findara.               

Na verdade, ninguém era de ninguém. Bastava saber-se da inauguração de um novo “point” (então, floresciam, tanto quanto as agências-filiais de bancos sulistas), para lá acudirem os poucos-muitos boêmios, artistas, jornalistas, empresários escritores, proxenetas, homos e afins. A nata da noite. As Marias-Chuteiras de hoje, eram as Marias-Damas-da-Noite de então. O cheiro de gasolina associado ao aroma de uma ‘eau de toilette’ e um cartão de visitas ‘faziam a festa’. Tais ‘marias’ derretiam-se como sorvete ao sol. O machismo desfrutava indevidos esplendores, acalentados por histórica e silente aceitação social.

Assim, na disputa da corrida-vida, tendo deixado para trás a 82ª barreira de obstáculos, nada a reclamar. Se o fizer, será somente para lastimar eu haver passado tão depressa pelo tempo. Sei que a fatura dos exageros, cedo ou tarde, nos é apresentada. A minha tem chegado, em prestações de prazos cada vez mais reduzidos. Pouco a pouco morremos um pouco. Mas, enquanto a ‘cuca’ estiver fresca e contar com amigos e amigas, depositários de meus sentimentos, a esperança subsiste.

Que esperança é essa? O instantâneo finalizar da existência; início da viagem em direção ao decantado senhor da eternidade, o fictício tempo.

 

Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual

Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,

participa do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos - BA
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http://livrodoscharutos.blogspot.com

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