Enquanto desfruto o prazer de me desdobrar em letras, retorno, à velocidade da luz, a maio de 1965. No presente 2023, cinquenta e oito anos transcorreram de minha chegada à Cidade da Baía.
Procedente de uma vida, geograficamente, limitada ao eixo Rio Grande – Pelotas – Porto Alegre, azeitada por dois anos em São Paulo, abriam-se para mim, cortinas de um novo mundo. Um choque cultural, guardadas as proporções, semelhante ao provocado nos lusitanos quando aqui aportaram há cinco séculos
Comecei
a vivenciar comportamentos incomuns em meu mundo anterior. Casais à luz do dia,
despreocupados, esfregando-se açodadamente na muralha beira-mar do Porto da
Barra. Trabalhadores recém-iniciados nas lides industriais, muitos deles por
não dominarem o uso de garfo e faca, ocultavam-se para se valer das mãos como
talheres.
Ainda
não havia motéis. Quem fosse amante da noite, ao embalo de Pata-Pata - canção
interpretada pela sul-africana Miriam Makeba (1932-2008) - e se deixasse levar
pelas tentações noturnas, mantinha só ou em sociedade, lugar apropriado para os
embates do final das noitadas. Não sem antes passar pelo Mercado das Sete
Portas, para refastelar-se com um saboroso sarapatel. Tudo era deliciosamente
divertido. Gravatas de seda, algures esquecidas. Direção perigosa.
Sobrevivemos.
Acabava-se
o dia, ou melhor, a noite, curtindo o raiar da aurora em meio aos jardins do
alto de Ondina, a ouvir pássaros, recitar Fernando Pessoa, amorosamente
enamorados sobre a relva umedecida pelos frescores da noite que findara.
Na
verdade, ninguém era de ninguém. Bastava saber-se da inauguração de um novo
“point” (então, floresciam, tanto quanto as agências-filiais de bancos
sulistas), para lá acudirem os poucos-muitos boêmios, artistas, jornalistas,
empresários escritores, proxenetas, homos e afins. A nata da noite. As
Marias-Chuteiras de hoje, eram as Marias-Damas-da-Noite de então. O cheiro de
gasolina associado ao aroma de uma ‘eau de toilette’ e um cartão de visitas
‘faziam a festa’. Tais ‘marias’ derretiam-se como sorvete ao sol. O machismo
desfrutava indevidos esplendores, acalentados por histórica e silente aceitação
social.
Assim,
na disputa da corrida-vida, tendo deixado para trás a 82ª barreira de
obstáculos, nada a reclamar. Se o fizer, será somente para lastimar eu haver
passado tão depressa pelo tempo. Sei que a fatura dos exageros, cedo ou tarde,
nos é apresentada. A minha tem chegado, em prestações de prazos cada vez mais
reduzidos. Pouco a pouco morremos um pouco. Mas, enquanto a ‘cuca’ estiver
fresca e contar com amigos e amigas, depositários de meus sentimentos, a
esperança subsiste.
Que esperança é essa? O instantâneo
finalizar da existência; início da viagem em direção ao decantado senhor da
eternidade, o fictício tempo.
Hugo Adão de Bittencourt Carvalho
(1941), economista, cronista, é autor do livro virtual
Bahia – Terra de Todos os Charutos,
das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,
participa do Colares – Coletivo
Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos - BA
[email protected]
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