Não sei porque, mas desconfio que o nome desse fotógrafo era Reginaldo
Pereira Tracjá.
Fernando Sabino
No
dia do enterro de Churchill ele foi barrado pela Polícia nada menos que cinco
vezes. Tinha credencial para se postar com as suas cinco câmeras junto ao
Parlamento, mas cismou de entrar na Catedral de São Paulo, onde só eram
admitidos os fotógrafos oficiais: meto uma conversa, estou aqui, estou lá
dentro. O guarda se postava em seu caminho, ele tranquilamente metia sua
conversa em português, desconversava, driblava, embrulhava:
—
Deixa pra lá, meu chapa: proibido nada. Pra cima de mim?
Na
quinta vez o guarda perdeu a paciência e o levou em cana. Mas não saber inglês
sempre tinha suas vantagens: passado para as mãos dos policiais do carro de
presos, tantas falou e aconteceu, que em pouco voltava, lampeiro, para junto da
catedral: eu não dizia? Olha o papai aqui. Agora vou entrar aí e mandar minhas
brasinhas.
E
acabou entrando. Depois do que, resolveu fazer uma reportagem fotográfica de
Londres, vista de cima. Vista de cima de onde? Londres não tem cima. Só se
fosse do Hotel Hilton, onde não admitem fotógrafos, para que a intimidade da
Família Real, nos jardins do Palácio Buckingham não seja devassada. Mas ele
tinha melhor: para que, então, havia sido inventado o helicóptero?
—
Onde é que você vai arranjar helicóptero? Ainda mais sem falar inglês. Vai levar
no mínimo uma semana. Deve precisar de licença especial.
— Que
licença especial! — e ele peneirava o ar com a mão espalmada: — Meto aí umas
conversas, você vai ver só.
No
mesmo dia rodava de helicóptero nos céus de Londres, fotografando o que queria
e bem entendia. À noite foi ao pub tomar uma cerveja. O lugar estava repleto,
derramava freguês pela calçada. Ele abriu caminho com as mãos, como se nadasse
de peito:
— Vai
que é mole, minha gente — e foi se enfiando bar adentro.
Mas era impossível alcançar o balcão, atrás do qual
o dono se desdobrava passando canecas espumantes aos mais afortunados que se
comprimiam ao seu redor. Ele bateu no ombro do inglês que lhe barrava a frente,
estendeu-lhe uma nota:
—
Olha aqui, ó velhinho, vê se me encomenda uma cerveja ao bigodudo lá do balcão.
Vai passando pra frente.
— I
beg your pardon? — o inglês o olhava atônito.
—
Bir, bir — esclareceu ele, correndo o mesmo risco daquele principiante em
inglês que sentia não estar fazendo progressos, pois toda vez que pedia uma
cerveja lhe traziam um urso. Com uma mímica desabusada, que abria em torno uma
clareira de empurrões, conseguiu explicar ao outro o seu propósito. E batia no
peito como Tarzan:
— Mim
brasileiro.
A
nota foi passando de mão em mão, e apontavam:
— Uma
cerveja. Para um brasileiro ali atrás.
Em
pouco veio voltando por sobre as cabeças uma caneca de cerveja. Atrás dela
voltou o troco. Todos achavam graça, inclusive o dono do bar, e procuravam
colaborar:
— Vai
passando. Muito obrigado.
Estava inaugurado um novo sistema de atendimento,
dentro da ética secular dos bares ingleses. Ele já sugeria ao seu vizinho:
—
Quer uma cerveja? Me dá seu dinheiro aqui. Você aí da frente, vai levando.
Para
um terceiro abriu caminho novo, usando uma série de mãos solicitar à sua
direita, em linha torta até o balcão. Estabeleceu mais uma conexão à sua
esquerda, aos poucos foi lançando por sobre as cabeças várias rotas aéreas de
dinheiro na ida e cerveja na volta, às vezes seguida do troco e de respingos de
espuma.
Em poucos
minutos o bar era um pandemônio: moedas circulavam de mão em mão, canecas eram
passadas daqui para ali, algumas se entornavam. Atrás do balcão, o bigodudo
punha as mãos na cabeça, incapaz de atender a um de cada vez, ameaçava botar
todo mundo para fora antes da hora de fechar. Onde, desde os tempos de Dickens
reinava o mais compungido silêncio e a mais perfeita ordem, baixou pela
primeira vez na História a mais animada das confusões e o contentamento era
geral. Os fregueses riam, alegres, e se prestavam a multiplicar o movimento,
estendendo os braços como remos naquele mar de cabeças:
—
Para quem essa cerveja?
—
Pega ali o meu troco.
—
Mais uma para mim!
O
sistema do mutirão se alastrara pelo bar inteiro, já ninguém mais sabendo de
quem para quem. A horas tantas ele se despediu com um tapa nas costas dos que o
circundavam, à brasileira, quando a animação ia no auge e se transformava em
cantoria:
—
Este bar já está chato. Vou me mandar e inaugurar outro.
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