quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O julgamento do “Ricardão”

     

        Jaime e Helena eram amigos de infância, vivendo numa pequena cidade do interior da Bahia, nos primórdios do século XX. Eram colegas de Sérgio no grupo escolar, e sempre estavam brincando juntos. Helena estava com 16 anos quando se casou com Sérgio. Que se formara contador e tinha escritório próprio. Helena continuou estudando até se formar em professora primária e passou a dar aulas no grupo escolar e dar aulas particulares indo na casa dos alunos cujos pais a contratavam para dar “reforço escolar”, uma ajudinha para os alunos relapsos e preguiçosos. Jaime ajudava o pai numa fazendinha que tinha nos arredores da cidade e que um dia viria a ser dele e da irmã. A vida seguia mansa até que estourou a segunda guerra mundial.

         A Europa parecia uma coisa muito distante, inatingível, para a população de Santana do Mato Dentro, e dava a impressão que não seria afetada pela guerra, mas foi. Jaime, então com seus 23 anos, foi convocado e seguiu para a Itália com outros jovens brasileiros para combater o Nazismo. Foi uma comoção geral na cidade, com muitas lágrimas e despedidas, mas logo a vida retomou seu ritmo normal, como soe acontecer. Finda a guerra, Jaime retorna ao lar como um sobrevivente, um herói. Muitas felicitações e abraços, mas notou a ausência de alguns amigos, principalmente do casal Sérgio e Helena, embora estivesse sabendo que ambos ainda residiam na cidade e no mesmo endereço. Seu pai, que deixara enfermo, havia falecido durante o tempo em que ele ficou fora, e sua mãe morava agora com a filha que se casara. Ele ficou morando sozinho na antiga casa da família, afinal, um dia também iria se casar e precisava de um lar.

Dias depois encontrou Sérgio no bar que costumavam frequentar. O cumprimento e a conversa foram frios, e sem nenhuma razão aparente. Mais alguns dias se passaram, e quem bateu à porta da sua casa foi Helena, que se desculpou por não ter ido recebê-lo na sua chegada (Sérgio estava indisposto), e passaram a colocar a conversa em dia. Assim como veio, ela se foi. Passados mais alguns dias, ela voltou, e novamente conversaram. Lembranças da infância e juventude, estórias da guerra, das cidades, usos e costumes italianos, e coisas assim, até que ela foi embora. Ainda tinha que preparar o jantar de Sérgio. Não tinha filhos. Ainda era cedo. E assim o tempo foi passando, Helena era assídua frequentadora da casa de Jaime, onde sempre passavam um bom par de horas conversando, afinal sempre foram amigos. Um dia a bomba estourou. Sérgio invadiu a casa e surpreendeu os dois em pleno coito.

O parangolé foi forte, e só não resultou em morte porque Jaime agora era um combatente treinado e experiente, que desarmou facilmente o seu antagonista e o colocou porta afora. Mas já havia uma multidão de vizinhos e passantes atraídos pelos gritos e ávidos por saber do ocorrido. Sérgio foi rápido e prestou queixa pela honra ofendida e já acionou um advogado para pedir a separação deixando Helena sem direito algum, como ocorria antigamente nestes casos. As opiniões se dividiam na cidade, a maioria contra Sérgio, que teria se aproveitado da sua condição de “herói de guerra” para seduzir uma pobre mulher inocente e indefesa. Jaime ficou praticamente sozinho, apoiado apenas pela irmã, o cunhado e alguns parentes próximos, mas a cidade em peso estava contra ele, um “aliciador de mulheres”, um “perigo para a tradicional família santanense”.

O caso foi a julgamento com presença e participação da sociedade. O advogado de Jaime conseguiu que ele pudesse aguardar o julgamento em liberdade, até que chegasse o juiz que viria de outra cidade para conduzir o julgamento. E tudo correu dentro dos trâmites legais e no dia marcado o tribunal improvisado no salão de eventos da Prefeitura, o julgamento teve início. Acusadores surgiam de todos os lados, até por parte de “amigos”, Jaime não se defendia e Helena permanecia cabisbaixa, mas respondendo às perguntas do promotor. A coisa ia muito mal, em que pese as boas argumentações da defesa. Quando tudo parecia perdido, Jaime resolveu quebrar o silencio.

Doutor Juiz. Eu já namorava Helena desde antes de partir para a guerra”. Foi um espanto geral. Os comentários e xingamentos contra os dois eram os piores possíveis. “Mas tem uma razão”. Afirmou ele para espanto de todos. E completou. “Sérgio é impotente. Não consegue manter relações sexuais. Escondeu isso de Helena. Sem querer desmoralizar o marido, me procurou, como seu melhor amigo, para dividir a dor comigo. Não querendo matar seu desejo com qualquer um, terminou se entregando a mim. E ele, se não sabia, desconfiava, e muita gente na cidade também.  Não sei por que só agora que eu voltei, ele resolveu nos dar um flagrante e botar a boca no mundo.  O problema é dele e não meu. E estou disposto a aceitar Helena como minha esposa, porque não conheço nenhuma mulher nesta cidade mais decente e melhor que ela”.

Dito isto. Fez-se um silencio sepulcral no salão, e o juiz absolveu os dois, encerrando o caso.

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