domingo, 2 de janeiro de 2022

 

* Destemperos *

Fraseador, fraseia. 

Assim seja! Seja nas horas do ócio conspirador, seja enquanto ele aguarda a conclamação ao almoço, sempre na esperança de tais horas serem compostas por infindáveis minutos. Ledo engano, pois tão logo aja, afiado o gume de umas tantas frases, altissonante chamada O almoço está na mesa! é escandida em voz arrastada e forte, como a querer ouvir o próprio eco.

 Quando, em meu exílio (in) voluntário onde fraseio, ao ser flechado pelo imaginário aroma da comida à mesa, dou-me por desentendido, fraseando prossigo.

 Nasci marido. Nos primórdios, marido com mania de impor em cozinha, sala e quarto meus destemperos; tinha-os como o de melhor se pudesse ter, colhidos na juventude vendo o dia-a-dia da casa onde vivia.

 Muitos outonos em folhas desfeitos, lares outros frequentados, incontáveis almoços insossos, outros tantos jantares mal servidos, silenciosas sensaborias, eu deixei de fazer contraponto do presente com o passado, das coisas assim e assado lá no rodapé do Brasil onde inaugurei o mundo.

 Afinal, bule e chaleira, cuia e chimarrão, carvão e churrasqueira, dia sim, dia não, uvas ou sagu de sobremesa, sortido café da tarde, versão gaúcha do chá das cinco, ensinado aos bretões por uma portuguesa, tudo ficara para trás. O aprendizado para conviver com tais ausências e lidar com novos sabores inéditos demandou esforço e pertinácia. Ao início, um coração jovem e vigoroso palpitava. No presente, a máquina pulsante se sustenta com algo implantado ao peito para discipliná-la, pois era dada a desvarios; destemperava-se sozinha. Algumas vezes, pecava por excesso; outras, por escassez. Comportava-se mais ou menos como eu enquanto marido das primeiras viagens. Eram tempos nos quais minhas vibrações cordiais correspondiam àquele pulsar, arrebatador e incontrolável, quando dos primeiros beijos e outros primeiros mais. Depois, tudo fica racional e previsível. Por mais se tente, nada é igual a antigamente.

 Qual o prato do dia? indago à mulher ao entrar na cozinha. Ainda não sei, estou vendo na internet, responde ela. Ótimo - cogito -, terei mais tempo para escrever. Isso ao abrir o refrigerador e raptar uma das louras polares, amantes do frio, acostumadas a traí-lo com os beijos de muitas bocas. Em paralelo, ouço voz feminina estranha e de distinto sotaque, explicando isso, detalhando aquilo. Minha mulher de costas para mim, atenta que só, mãos ocupadas, desvia o olhar da terrina e do celular, gira a cabeça em minha direção e ao notar silente e delicioso sorriso em meu semblante, indaga Está rindo à toa? Eu, de chofre, Estou rindo da patroa! Sem dar tempo a mais nada, deixo para trás o agradável aroma que farejara.

 Aprendi ser boa a convivência conjugal com duas cozinhas: a dela, paciente de marido destemperado, com fogão, forno elétrico, refrigerador, freezer, micro-ondas, armários, pratos, pratinhos, pratões, talheres para os mais variados misteres, incontáveis especiarias e temperos; e a minha, marido de nascença, noutro canto, a cozinhar com canetas, umas tantas folhas de papel e parcas porções de meus destemperos. Assim, no improviso, ponho-me a misturar o real com o imaginário e, na busca deste, comprazo-me, beijo as louras, sinistras segundo Prima Luíza, leopoldinense, letrada cozinheira de lindos pratos, senhora dona de saberes culinários mineiros. Contra as malfadadas louras, pelo prazer de guerrear, declarei guerra inútil, ao incendiar os últimos andares da imaginação. Ademais, tais chamas são virtuais; atemorizam, mas não queimam. Se reais fossem, não esqueçamos ser tempo de solidões individuais, chuvas torrenciais, bombeiros ocupados por demais, dramas oriundos de situações tais.

 Ante a ameaça de vírus desconhecido, mais um dos destemperos da vida, nada de novo no front do cozinhar para sobreviver se comunicando a distância. Tal distância não impõe a “chatice de usar máscara”, cara limpa, nada de esconder contrações faciais de alegria ou tristeza. Além disso, no destempero reinante, à presente altura da culinária-vida, estou acostumado aos mais estranhos, diversos e inesperados sabores. Um dia, sal a mais; outro, a menos.

 São incontáveis, as ameaças que pairam sobre os cozinheiros velhos como eu. Hoje é o escorregadio esculápio a me impor semestrais exames sob ameaça de operar minha próstata; amanhã será a simpática doutora, ares investigativos, a examinar meus sinais às mãos e ao crânio, potencialmente perigosos, recomendar pouca exposição ao sol e aconselhar uso de chapéu; tanto não baste, o guardião dos meus gêmeos castanhos, através dos quais vejo o mundo, insta estar próxima a época das cataratas e, anualmente, revisa e ajusta o grau das lentes; da mesma forma, a cada semestre, devo estar com o zelador do marca-passo para, do alto de sua sapiência, ouvir restarem uns tantos anos para trocar a bateria do aparelhinho, como se isso fosse certificado de garantia de eu estar por aqui, lá na frente, ainda a cozinhar.

 Um avião despenca, uma barragem rompe, uma boate incendeia, um vírus mata, gostemos ou não, assim, no entanto, caminha a humanidade.

 Ante tal certeza, apesar dos fugazes desalentos e destemperos, recolho-me às minhas mesmices, convicto de as calamidades, inesperadas ou anunciadas, serem incapazes de destruir nossas ilusões. 

 Sorte nossa. 


 

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