terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Felizes para sempre

O tom em dó maior se espalhou pela nave e nos discretos audiofones dos convidados sintonizados no conjunto que executava com precisão eletrônica a Marcha Nupcial, de Mendelssohn. A cerimônia estava sendo transmitida para o mundo inteiro via aplicativos com imagens feitas por drones sensíveis aos movimentos e que captavam a freqüência emotiva dos presentes através dos batimentos cardíacos e análise do ar respirado. Todo mundo na mesma emoção ao presenciar algo inédito: o primeiro casal da história a celebrar cem anos de casamento. 

Ele marchou firme com seu coração de porco, transplantado, geneticamente modificado, sua prótese de quadril bi articulável e um chip de reativação memorial que mantinha online seus pensamentos, linkado a corpos cavernosos de enchimento automático que garantiam a ereção, quando desejava. Ela aparentava felicidade em sua bioface recoberta com pele ectoplasmática, um exoesqueleto que lhe dava sustentação e que mantinha a curva dos seios, implantes hormonais e reposições que mantinham o desejo ainda ativo – havia sonhos eróticos inesperados, mas o controle estava em aperfeiçoamento. Nas cadeiras, convidados, e hologramas em oito dimensões, de amigos, familiares, um filho centenário já falecido, ocupavam parte da igreja.

Se há 70 mil anos o homem era um animal insignificante a cena acima é uma possibilidade como nos mostra Yuval Noah em seu Sapiens. O livro nos conduz pelo caminho cronológico de nossa espécie em direção à superioridade evolutiva e à ideia que o Sapiens (e a mulher Sapiens, também) pode estar condenada ao desaparecimento. É chocante, mas a consciência de fatalidade biológica não é um conceito desprezível. Todos os aspectos da evolução - econômico, político, religioso - parecem-me infinitamente menores diante do portento que é a evolução biológica. 
O sapiens já é um Deus. Ele decifrou o DNA, já tem condições de fazer manipulação genética, criou o primeiro organismo vivo, portanto, está preparado para reverter todo status quo biológico fazendo adaptações inimagináveis que irão subverter os preceitos do determinismo biológico da natureza. Não é apenas a tecnologia de substituição de partes do corpo por componentes mecânicos, humanos, ou de outra espécie - futuro inevitável - mas quanto será manipulável e quanto do humano natural permanecerá nesse humano transformado em que doenças e caracteres serão eliminados por escolhas genéticas- sob controle de algum tipo de poder. Os impactos da longevidade sobre os sentimentos são imensuráveis. O tempo finalmente vencerá os limites do amor ou o contrário?
Ao darmos esse salto - impossível de ser detido - teremos iniciado o jogo de dados de Deus com o universo - ou metaverso - cobrindo de perguntas, angústias, incertezas, a aventura humana na terra. Sapiens nos lança em um desconhecido de questões que nos afetam como humanos.
Enquanto isso, no altar, o Papa pop, completava a celebração
- Eu vos declaro marido e mulher. O que Deus uniu nem a morte separe!

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