domingo, 23 de janeiro de 2022

 

* Cinzas, nada mais *

 Bisavós! Quem, porventura, teve o privilégio de ser ninado nos braços dos avós de seus pais? Pó esparso há incontáveis anos, varro o chão da memória, na vã tentativa de encontrar pegadas.

 Por avós são dois casais; bisavós, quatro; tataravós, oito, sob tal progressão seguem as ramificações da árvore genealógica. Devido a brevidade da vida terrena, raríssimos são os casos de um humano, mesmo em criança, coexistir com os quatro casais de bisavós.

 Algum contato, uma foto, o que seja, com algum dos avoengos, no futuro trará à tona doces recordações. Da mesma forma, alcança-se a sensação de longevidade quando, em idade avançada e precoces casamentos da descendência, pudermos ninar bisnetos.

 Se eu não for atropelado - azares do destino ou praga rogada – se quando trocar meu motor 8.0 pela versão 9.0 e a estrada-vida prosseguir bem sinalizada, talvez possa reprisar minha avó: minhas bisnetas gêmeas, em 2022, completam 17 anos.

 Voltemos aos antepassados.

 Pelo ramo paterno, distante estive dos bisavós e pouco posso falar dos avós. O pai de meu pai, nascido em 1857, falece aos 86 anos, quando de meus primeiros passos. Tanto dele (português de nascimento e ascendência) quanto dela (nascida em 1884, paulistana, filha de pai português e mãe alemã) algo ligado a tempos idos, apenas uma foto. Caprichos da vida, não as deles e sim a minha: fotografia em sépia, aos meus sete meses (outubro, 1941), ao verso com dedicatória na inconfundível e caprichada letra de meu pai, desejando pudessem ver-me homem feito. Ledo engano: ambos falecem em abril de 1943. Ela dia 10, ele 19 dias após.

 Fácil deduzir a enorme distância temporal de meus bisavós paternos, a respeito dos quais nunca ouvi uma só palavra de meu pai, boca silenciada em 1968.

 Do avô materno, com quem convivi metade da infância, também nada escutei relativo aos mais velhos - quando quis indagar era tarde. 

 Quanto aos pais de minha avó - mãe de uma só filha, minha mãe - por tal ramo convivi com uma história rara, de tristeza. Trocarei tristeza por justificada revolta - será mais adequado ao relato.

 Relembro serem catarinenses - pescadores de baleias - meus ancestrais maternos, oriundos da cidade de Garopaba. Um ano após o final da I Grande Guerra, meus avós - no verdor dos seus vinte e poucos anos - com minha mãe, aos dois de idade, emigram para a cidade de Rio Grande.

 Em Garopaba viveram e morreram meus bisavós e outros avoengos. Nunca estive com o bisavô, símil nome ao do líder da Revolução Farroupilha, Bento Gonçalves, e sua mulher, Maria, coloquialmente tratada por Vó Bilica. Deles, ocasionalmente, ouvia comentários em cartas com notícias sobre pescas e parentes.

 Anualmente, éramos visitados por primas e primos de minha mãe, sobrinhos de minha avó, também Maria, portadores de notícias da enorme família. Quando pela vez primeira visitei Garopaba, final dos anos oitenta - em busca de membros da velha-guarda – conheci tio-avô Oscar, então aos 94 invernos nos costados.

 Para não me alongar, passemos logo à história acerca de Vó Bilica.

 Ano 1949. Trombetas anunciavam o Papa Pio XII haver proclamado 1950 como “Ano Santo”, lotado de indulgências, acenos de benesses celestiais aos fiéis católicos. Minha avó era católica à moda brasileira, herança cultural dos tempos do Estado vinculado à religião católica: nunca a vi em igreja alguma; em sessões espíritas, sim. Por muitos anos, saia à noite, guarda-pó branco debaixo do braço, vez em quando, arrastava-me a contragosto, ao centro espírita. Ar de arruda, preces, manifestações e os indispensáveis “passes” de purificação do corpo: eu, assustado, tremia.

 Transcorriam os dias natalinos de 1949, quando o carteiro bate à porta com notícias de Garopaba. Minha avó, - naquele instante, eu, “pregado” à sua saia, - ela ansiosa por notícias deixa seus afazeres – lembro bem, estava triturando no alguidar os grãos aferventados do feijão – feliz da vida, rompe o envelope à espera de boas novas. De súbito, profere lamentoso Ai, meu Deus! Sucedeu-se uma descarga de imprecações contra o Papa e o “Ano Santo”.

 Após breve enfermidade, morrera-lhe a mãe, e ao chorar reclamava não ter sido avisada com antecedência, bastaria simples telegrama. Se tanto houvesse ocorrido, daria um jeito de enfrentar a dureza de 700 quilômetros de estradas, para estar com a mãe ao derradeiro adeus. Rios de lágrimas, a velha avó vestiu-se de preto, enlutados passamos o Natal e ingressamos em 1950.

 Transcorrido o Dia de Reis, a velha mais conformada, é surpreendida por telegrama assinado por um de seus irmãos: Venha urgente vg mamãe muito mal pt Menoti.

 Se antes, minha avó havia proferido horrores com relação ao coitado do Pio XII e seu ano santo, imagine-se agora. A carta fora recebida dez dias depois de expedida. O telegrama, sido postado uma semana antes da carta, só chegou após seis de janeiro. Profunda e compreensiva revolta, novas lágrimas e redobradas tristezas pelo péssimo serviço dos Correios da época.

 Fugi ao assunto, mas era tudo quanto me é dado relatar com referência aos ancestrais.

 Fotos de tempos idos, pouco ou nada significam a nossos filhos: as ditas, aos ditos, nada ditam.

 As imagens, ora recebidas a todo instante, são tantas a ponto de fotografias antigas e raras converterem-se em simples objetos de decoração.

 Os álbuns? Por onde andarão? Ninguém mais, nas noites frias do inverno, senta-se à sala, aconchegante momento, arrodeado de familiares, a passear naqueles arquivos do passado.  Em cada página parávamos, ora manifestávamos pesar por alguém falecido, ora dávamos boas risadas, ora relembrávamos casos e ‘causos’ fruto do clique e do olhar de quem tirara a foto.

 A ninguém mais interessam milhares de fotografias espalhadas por aí. Inclusive as nossas, pessoais, crianças ainda, cabelos cacheados, calças curtas, meias aos joelhos, em alguma das praças da cidade onde vivíamos, tentando-se perpetuar o tempo.

 O resto, cinzas.

“Cinzas, somente cinzas, nada mais”.

Hugo A de Bittencourt Carvalho

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