sábado, 22 de janeiro de 2022

 

                                                         *Quase coincidência*

Janeiro 2005, eu ainda produtor rural – atividade paralela por 30 anos -, postei-me à varanda da casa, na fazenda sita em Ubaíra, ao alto da região lindeira ao Vale do rio Jiquiriçá: por muito tempo, meu refúgio às atribulações de um viver apressado. Recanto sem automóveis, poluição, ruídos urbanos, ideal para desfrutar-se a paz de meus charutos. Levara a família para curtirmos dias das férias do estio.

 A atividade, essencialmente agrícola, cacau. Não tínhamos bois nem cavalos. Galinhas, umas quantas para ovos nossos de cada dia. Ah! Quase esqueço! Havia sim, algumas mulas, contabilmente denominadas ‘semoventes’, para transportar a colheita para a barcaça de secagem.

 Tais animais eram a distração dos filhos, então com cinco e sete anos. Quando equipadas com ‘panacuns’, cestos laterais, os garotos mais os filhos do caseiro acomodavam-se aos ditos – pesos compensados, um ou dois na sela, mais um em cada cesto – e saiam a passear em meio às veredas do cacaual, guiados por um dos empregados: com os sacolejos da animália, riam a mais não poder.

 Enquanto as fumaças de meu charuto, magicamente, atraiam bons pensares - a turminha pelas bandas da cozinha - o caseiro, sabedor do gosto da garotada, surge, vence a ladeira e desponta com uma das mulas devidamente equipada. Instante no qual todos, dando-se conta da sempre esperada diversão, esbaforidos, corressem, ladeira abaixo, em direção a ela.

 - “Papai! Olha a mula, lá!” – alvoroçado, um deles exclama.

 Pus-me a rir. Os meninos, sem entender a razão, perguntaram onde estava a graça. Afinal, não viam nada que a provocasse.

 - “Foi nada, não!”, respondi.

- “Vão se divertir!”, completei.

 Após ‘embarcarem’ na mula e sumirem entre a floresta frutificada, continuei sorrindo com meu charuto, companheiro em mais de seiscentas viagens no trecho Salvador-Ubaíra, algo correspondente a cerca de oito voltas ao redor do equador.

 Aquela ‘mula, lá’, evocava a quase coincidência com certo slogan político, então em voga de norte a sul do Brasil.

 Mula-lá!

 Hugo A. de Bittencourt Carvalho, economista, cronista, ex-diretor das fábricas de charutos Menendez & Amerino, Suerdieck e Pimentel, vive em São Gonçalo dos Campos – BA.

 ([email protected])

 

 

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