domingo, 9 de janeiro de 2022

 

   * Preta, pretinha *

 

Lembro, vejo, ouço.

A alma não pode acabar de chorar.”

(Caetano Veloso ao lamentar

a morte de Moraes Moreira.)

Abril, 2020

  Certificado de residência: cidadão honorário são-gonçalense e pseudo- baiano, moro em terras circundantes à maior baía do Brasil - de Todos os Santos, segundo batismal certidão, - ora, também, Amazônia Azul: águas a perder de vista, tidas pelos tupinambás por Kirimurê, grande mar interior.

Quem tem o privilégio de viver neste recôncavo - outrora mata atlântica, temperatura aprazível, hoje quase sertão, calor tropical, - aprendeu com o compositor baiano Moraes Moreira (1947-2020), inédita definição de alegria:

 Alegria, alegria é o estado chamado Bahia.

 O poeta, em estado de graça, elevou ao cubo um estado de espírito, transpondo-o para uma área geográfica multifacetada, um estado, a Bahia.

 Desde sempre, os grandes hits musicais baienses espraiam-se pelo mundo, tal qual o vírus da moda.

 Refiro-me, agora, a outro poeta, Castro Alves, nascido em terras integrantes do recôncavo, eternizado em bronze no coração da capital baiana, Soterópolis, em praça batizada com seu nome. Sua estátua fala por si: braço horizontalmente estendido, postura corporal altaneira, voltada à imensidão do mar azul da baía.

 Moraes Moreira captou, com olhar arguto, a essência contemplativa daquela imagem, unindo-a a seu surto inspirador:

 A gente se completa enchendo de alegria a praça e o poeta.

 Em tais tempos, verdor dos trinta anos, induzido a carnavalesco - macacão, luvas, máscara - amigos não perpetuados na memória, estava à praça do poeta, enlevado ao ver Moraes cantar, pela vez primeira vez, em cima de um trio elétrico. Horas a fio, no sobe-desce a ladeira de São Bento, éramos abraços em antecipada saudade da passageira alegria. Outra vez, Moraes captou o sentimento coletivo.

 Entre o abraço do parceiro e um pedaço de amargura.

 Quem me lê, por certo ouviu - se viveu, não sei – as belas composições do artista recém-morto. São tantas... Ao recordá-las, o passado revisito.

 Quando os acordes da clássica Preta, pretinha sacudiram a massa, adotei-a, carinhoso epíteto, para com uma das filhas.

 Bastava exclamar Preta!

Ela, ao ouvir-me, prontamente acudia Pretinha!

 Plena de razão, afinal, a letra carnavalesca proclama:

 Assim vou lhe chamar, assim você vai ser, só, só, somente só.

 Assim foi, assim prossegue.

Ao saber da morte do poeta, lembrei-me da filha.

Minha Preta, pretinha, vive na Argentina.

 Liguei para ela.

Nossas almas, caetanamente, choraram no mesmo compasso.

 Obrigado, Moraes Moreira, pela alegria de sermos contemporâneos.

Sua inesperada partida deixou-me triste e saudoso.

 Eu sou pássaro que vive avoando.

Ai, ai, ai, ai saudade não venha me matar.

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