domingo, 1 de maio de 2022

 


* Quebra-cabeça *

 

Recôncavo Baiano: Bar Paulo 200

Vésperas da pandemia

2 – 2 – 2020

 

 Um interlocutor revelou curiosidade acerca de minha descendência.

Resolvi elencá-la - sou homem de segredos poucos - embora saiba isso não ser próprio do gênero masculino, senhores de segredos muitos. Não é à toa, pois, segredar um quase nada acerca das “donas sozinhas de meu coração”.

     No script, há de se observar, também, a ausência dos amores-vulcões, posto sem semeaduras deixaram somente cinzas: o cerne do assunto é a árvore genealógica descendente. 

Em mesa a um canto, no bar de minha predileção, Paulo 200, rabisco estas mal traçadas. 

Estamos ao dia 2, mês 2, ano com 2 dois e 2 zeros: 2-2-2020. Algo de especial, afora a singela coincidência? Sim. Salvador é só alegria como (en) cantou Caymmi: “Dia dois de fevereiro, dia de festa no mar; eu quero ser o primeiro a saudar Iemanjá”. Iemanjá do mar, também Oxum nas águas doces, não deixa de ser Iara. As duas primeiras, vertentes das telúricas crenças africanas; a terceira, filha das tradições indígenas. 

As festas soteropolitanas são movidas a toques de berimbau, samba de roda, muita cerveja, exuberante alegria. Gente de todos os naipes, nativa e alienígena, em bares repletos ruas afora. O branco inunda o espaço até onde a vista alcança, pacífica alvura ao som do afoxé Filhos de Gandhi. Beldades de tez acobreada, ginga felina, incríveis requebros, desbundantes trejeitos.

Hoje é dia de festa! “Do jeito que a vida quer”, distendo-me ao espaldar da cadeira de bar na companhia de uma loura gelada e, em meio à privada alegria, ponho em cena as “donas sozinhas de meu coração”. 

Com a primeira proprietária de meus afetos, fui pai cinco vezes; com a segunda, duas; com a terceira, uma e, com a quarta, atual e derradeira, mais duas vezes. Tais criaturas são sócias em grande riqueza: cinco filhos e cinco filhas. Mantenho contato com as afetivas parceiras e a prole, apesar de a roda viva do mundo havê-los dispersado pelos mais diversos rincões. Epopeia narrada a seguir. 

Marchemos geograficamente. 

As idades, entre parênteses, correspondem às festejadas em 2020.

Depois, será só montar o quebra-cabeça, decifrar em quais terras pisei nos últimos sessenta anos.

     Partamos do Recôncavo Baiano, epicentro sentimental de minha vida, onde assumirei - no dizer machadiano - o eterno aposento. 

Sob minha tutela, vivem os dois filhos mais jovens, baianos de Feira de Santana, ainda estudantes: o 10º (20), Ciências Contábeis, e o 9º (22), Fisioterapia. 

Ao norte, Recife, reside o 3º filho (58), paulista, militar reformado da Marinha de Guerra; em Maceió, mora a 2ª filha (59), porto-alegrense, advogada, aposentada pelo TCU. 

A oeste, Belo Horizonte, sentou praça a primogênita (60), gaúcha de Pelotas; em Brasília vive, há anos, outra das filhas, a 3ª (57), paulista, também funcionária aposentada do TCU. 

Agora sigamos em direção ao sul. 

No estado capixaba, São Mateus, quem lá for conhecerá o 5º filho (56), porto-alegrense, geógrafo, agrônomo e professor. 

Descendo alguns quilômetros, Rio de Janeiro, será fácil encontrar o 8º filho (39), soteropolitano, ligado ao ramo de equipamentos pesados para a indústria petrolífera. 

A essa altura da narrativa, é provável alguma confusão. Falta, todavia, conhecer duas filhas, além-fronteiras.

 Para visitar a 7ª (39) – nascida ao mesmo ano do 8º filho sem serem gêmeos, presentes da vida aos meus 40 anos, - soteropolitana, será necessário passaporte. Vive feliz e fagueira nos Estados Unidos. 

Para estar com a 6ª (50), também soteropolitana, bastará passagem para Buenos Aires. Confeiteira de mão cheia, adoça vidas portenhas. 

Nem de longe, nutro a intenção de dissertar sobre netos e netas, mais de vinte - a neta primeira já aos 40 anos -, bisnetos e bisnetas, as duas mais velhas, gêmeas, em 2020 a festejar 15 anos. 

Se aguentar o tranco, sonho chegar à etapa na qual minha avó materna, então, requeria: Meu neto, dá cá tua neta! 

Tanta gente às costas induz ao ilusório: ter-se onde cair morto. Filhos criados são filhos do mundo, aos genitores compete encaminhá-los na vida. Isso concluído, tudo se transforma em estatística e, mais à frente, em lápide, quando alguém dela cuide, caso contrário... 

O mundo dos descendentes não é o meu, por isso preparo-me, ao final da existência, para deixar pegadas – rastos desejáveis, não anotados em terras e tempos dos ascendentes, vividos em silêncios tumulares. 

Ao manejar palavras, aspiro a implodir a barreira herdada e dar pistas à posteridade. 

Enquanto isso, espreito o porvir do alto do combro erguido pelo vento e procuro antever a sensação do leitor ao desdobrar as letras de minha faceirice acerca da paternal epopeia. 

Não há vírus capaz de afetar tal história. Sorte minha por havê-la logrado, bem como por contar com amigos e amigas dispostos a saber coisas tais. 

A trágica comédia humana, nutridora de nossas fantasias, a entusiasmar-nos para persistir na busca de segurança às existenciais indagações sem respostas.



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