sábado, 14 de maio de 2022

 


*Salvador Dali*

 

"Como posso querer que meus amigos entendam

as coisas loucas que passam pela minha cabeça,

se eu mesmo, não entendo? “

Salvador Dali (1904-1989).

Ouço os Beatles, desligo as luzes,

vejo nos céus, nuvens transformadas

em corcéis alados, sobre azuis profundos e intraduzíveis.

Imagino rosadas palmas de Santa Rita,

serem mastros e velas de nave rodeada

por minúsculas canoas feitas com pétalas da mesma flor.

 

Miro as volutas de meu charuto,

concebo no jorro de um vulcão,

a mulher-magma incandescente, peitos nus, braços estendidos,

mãos espalmadas em direção ao céu, a apoiar a lua.

Faço da areia beira-mar meu leito,

protejo o livro com meu corpo,

cubro-me com o diáfano manto das ondas desmaiadas.

 

Ouço os Beatles, embevecido,

vislumbro cavalos (des)feitos de neve

a galope nas encostas geladas do Himalaia,

com elas (con)fundidos.

Sonho com vela eterna, nunca se extingue,

a formar um vulto de mulher,

em sua resplandecente chama.

 

Aspiro o doce aroma de meu charuto,

imagino quixotescos moinhos de vento

e suas pás borboletas gigantes, multicoloridas.

Surpreendo-me com o cabelo louro-fogo de uma mulher,

liquefazer-se em transbordante cachoeira azul-gelo.

 

Ouço os Beatles, concebo homens a estender

grande rede circular, fluída e ondeada

como as águas do mar, em prontidão

para o despencar de um golfinho lá dos céus.

Vejo no mesmo mar, a crista das ondas,

travestida em mulher-espuma-branca,

entrelaçada a um homem-rochedo-negro,

dois amantes.

 

Giro entre os dedos, meu charuto,

sem temores, miro o firmamento

e deparo-me com furtivas mãos

na tentativa de abrir brecha entre as nuvens

e lançar um olhar sobre coisas varridas

para debaixo do tapete de água na praia.

Avalio, ainda, o quanto restou da árvore cortada,

a canoa e os remos nos quais se transformou

e enraizados nas curvas de nível da terra,

canoa por um homem nu remada,

em direção ao nada.

 

Ouço os Beatles, fecho os olhos,

cobiço a mulher que, com as pernas, abraça

o livro de contos eróticos do Marques de Sade.

Dentro dele, quando aberto ao acaso,

ela se metamorfoseia em borboleta,

e encanto-me com as acrobacias, opostas e simultâneas,

de supersônicos no céu e de golfinhos no mar.

Quase iguais, quase peixes, quase aviões.

 

Curto meu charuto na solidão noturna,

Esforço-me em entender o ovo bipartido

com sua gema, sol e claridade

a seduzir mil borboletas que borboleteiam

ao redor dos panos de um barco sem timão.

A mesma luz soprada de uma vela divina,

protegida por mãos celestiais, na forma de cone iluminado,

desvenda o rumo para o barco desorientado

em meio às ondas encapeladas da procela.

 

Silêncio!

Acendam as luzes!

Desliguem os Beatles!

Outro charuto, por favor.

Quem me dera entender Dali!

 

Hugo A. de Bittencourt Carvalho, economista, cronista, ex-diretor das fábricas de charutos Menendez & Amerino, Suerdieck e Pimentel, vive em São Gonçalo dos Campos – BA.

 ([email protected])

 

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