domingo, 22 de maio de 2022

 


* Caro data vermibus *

 Carne dada aos vermes - Expressão latina

 

        Copio Voltaire, livro de Fernando Savater: El jardin de las dudas.

        “Desde a terra onde o destino escolheu para o final de minha vida, sepulcro onde acomodarei meu projeto de cadáver, como convém a qualquer defunto resignado, escuto uma voz suave a ordenar-me: Levanta-te e anda.”

        Tenho percorrido as aleias do “jardim das dúvidas em recente visita, deparei-me com o pensar voltairiano, ajustado sob medida à minha realidade.

        Ao sentir-me onde não estou saudade aflora, mas ao estar no jardim deixei a saudade de lado e assumi a ordem, como se a mim houvesse sido dirigida.

        Assim, parto ao labor literário, tendo por pano de fundo as palavras de Voltaire, cruzadas com meu destino.

        Nosso espírito não nos garante e, muito menos, apressa-nos a partir para uma sonhada vida eterna. Em compensação, nosso projeto de cadáver tem destino certo, disso ninguém duvida.

        Somos futuros cadáveres ambulantes e, em dado momento, nada mais seremos senão caro data vermibus. Expressão fantasiosa, na qual tenta-se creditar a origem da palavra ‘cadáver’ à fusão das três primeiras sílabas da frase latina.

        Há, inclusive, um poema do poeta pessimista, Antônio Pereira Nobre (1867-1900) - contraponto lusitano de nosso Augusto dos Anjos –, no qual a referida etimologia foi empregada como título: Ca(ro) da(ta) ver(mibus).

        Tanto, todavia, não tira da citada expressão uma verdade incontestável, ignorada por muitos: o cadáver embutido em cada um vive à espreita de sua libertação.

        Nós, pressurosos aspirantes à vida eterna, tentamos elastecer – unguentos, poções, promessas e orações – o tempo prisional do indesejável habitante íntimo o qual, contenda em livrar-se de nós.

        Aspira-se a vida eterna, mas não se pretende libertar o cadáver. Um aparente contrassenso; quando tal brado de libertação aturde nossos ouvidos, vocalizamos este protesto, reclamamos estar o tempo transcorrendo muito veloz.

        Assim, teimamos em não reconhecer a proximidade da fatal libertação do suporte de nossa vida. Suporte carnal de destino conhecido, caro data vermibus. Por via de dúvidas, entretanto, inconformados, engendramos ser ele quem irá aos vermes, nunca será o “eu”, pretenso, vaidoso e crente, como o que aqui está a costurar palavras para entender-se.

Lamentavelmente, tal esforço tem (az)ares iguais a buscar velhos amores, melhor nem tentar. 

Hugo A de Bittencourt Carvalho

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