* Tempostal *
Os cartões postais criados em 1880, propostos pelo conselheiro Buarque
de Macedo - quase esquecida forma de comunicação – lotavam as malas dos
Correios, fotos do mundo afora com mensagens manuscritas ao verso, marcando o
tempo escorrido: tempo postal, ‘tempostal’.
Nele inspirado, aproveito o ensejo para trazer à tona, meu alter ego. Meu outro eu: o ‘heroico’.
Acomodemo-nos,
pois.
Aumentarei o volume da imaginação, assim poderemos ouvir a voz da consciência sussurrar a meus ouvidos.
Belo dia decides
remexer gavetas, revirar papéis, remoer lembranças. De repente te dás conta da
exorbitante quantidade de fotos de tempos outros, analógicos; de guardanapos de
restaurantes com fugazes declarações de afeto; de vinis, fitas cassete, CDs que
nunca mais ouvistes; de cinzeiros de motéis, espadachim fostes de capa e
espada; de quando, peito aberto, enfeitastes bonecas para outros brincarem e,
por que não lembrar, de vezes outras, quando avançastes o sinal, atropelando o
nono mandamento.
Também encontras em tais horas, caixas de charutos vazias, nas quais moravam os mágicos e inesquecíveis rolinhos, companheiros de tantos momentos prazerosos; idem, cartas perfumadas recebidas, com confissões inconfessáveis, e ... dando um pause, deixo espaço para, girando periscopicamente a mente, regredires e trazeres junto a ti, instantes de dez, vinte, trinta e mais anos. Eu sei que os tens e muitos.
Mergulhes de corpo e alma na piscina da casa, onde anos esquecidos, teus filhos acorriam a teus abraços gritando Painho, Painho! Construída beira-mar, naquele sonho de consumo da baianidade, Itaparica. Ilha, onde incautos holandeses, segundo Ubaldo Ribeiro em “Viva o Povo Brasileiro”, quando aprisionados, eram postos a engordar para ser devorados pelos índios-habitantes, donos daquela terra.
As fotos daquela casa trazem para agora, aquele coqueiral, aquele mar alcançado num piscar de olhos, aquelas plantas parecendo artificiais de tão bem tratadas e aquelas pessoas que teus olhos tantas vezes viram, muitas já se foram.
Noutra foto, além de tua ex-mulher, amiga de sempre, com seu inseparável sorriso e sua beatífica paciência - atirando um beijo ao fotógrafo - também reencontras a mãe, a avó, a madrinha e a irmã dela, todas então vivíssimas.
Patrono de tudo aquilo, não te davas conta da felicidade ali morar. Precisou envelheceres para entender que ela, “a felicidade, está sempre onde nós a pomos, mas nunca a pomos onde nós estamos”.
Por isso, nos dias que
correm, velho e calejado, apercebes-te, reconfortado com o feliz passado, teres
no presente uma nova e palpável versão da felicidade.
Tua atual e derradeira companheira a quem tratas por Linda, confunde os menos íntimos, induzindo-os pensar ser tal seu nome. Certo dia – lembras? – um amigo desavisado, ao despedir-se a tratou por Dona Linda. Não é ótimo? Todavia, bem sabes haver o verso da medalha. Volta-e-meia, brincalhão que és, a tratas por Maria. Basta, o diálogo transitar pelas ocupações e rotinas do lar, coisas de tal jaez.
Mas, não quero perder o fio da meada. Ah! Estava a dizer-te haveres aprendido ser tão feliz quanto, sem perceber, eras no passado. Minto. Hoje és, sim, duplamente feliz. Pelo passado congelado e pelo presente declarado. Mescladas sensações da meia-idade e da velhice. Vasos comunicantes do viver a vida.
Assim podes, sem medo, relembrar os caxixis de Maragogipinho, artesanato baiano de barro cozido, espalhados ao acaso naquele verdejante gramado; os guaiamuns azulados, a emergir da areia nos tempos do veraneio; as cordas de caranguejos enlameados, trazidas à porta pelos pescadores; as lambretas cozidas ao bafo, e o sumo salpicado com coentro e gotas de pimentas milagrosas; … Hás também de recordar, os churrascos naquele espaço próprio a tanto, onde reinavas.
Reinações de Narizinho. Vovó Anísia, a Dona Benta da tua família, ainda vive na fotografia ora em tuas mãos.
Sem perceber,
aprendestes curtir o desapego material.
Teu pai - eu sei, por escutar muitas vezes – com ênfase, assegurava serem ‘os cabelos o único bem de raiz do homem’.
Tudo passa. Rápido, como o gole de cerveja que acabas de ingerir. Tão instantâneo, que soa a um segundo o tempo para me ouvires.
Já vencestes o marco 80 da existência. Estou a par dos artifícios, subterfúgios e cuidados com os quais te proteges, tanto do implacável girar das horas, quanto do tenebroso mau olhado. Isto, tem permitido viajares no tempo.
Tempostal. Tempo escorrido nessas linhas, teu passado e teu presente, num postal eterno. Enquanto dure, é lógico!
O
agora avisa ser tempo de despedidas.
De ti e dos olhares benfazejos que por aqui passarem.
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