domingo, 24 de março de 2024

 


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Tempostal *  
 Os cartões postais criados em 1880, propostos pelo conselheiro Buarque de Macedo - quase esquecida forma de comunicação – lotavam as malas dos Correios, fotos do mundo afora com mensagens manuscritas ao verso, marcando o tempo escorrido: tempo postal, ‘tempostal’. 

Nele inspirado, aproveito o ensejo para trazer à tona, meu alter ego. Meu outro eu: o ‘heroico’. 

Acomodemo-nos, pois.

Aumentarei o volume da imaginação, assim poderemos ouvir a voz da consciência sussurrar a meus ouvidos. 

Belo dia decides remexer gavetas, revirar papéis, remoer lembranças. De repente te dás conta da exorbitante quantidade de fotos de tempos outros, analógicos; de guardanapos de restaurantes com fugazes declarações de afeto; de vinis, fitas cassete, CDs que nunca mais ouvistes; de cinzeiros de motéis, espadachim fostes de capa e espada; de quando, peito aberto, enfeitastes bonecas para outros brincarem e, por que não lembrar, de vezes outras, quando avançastes o sinal, atropelando o nono mandamento. 

Também encontras em tais horas, caixas de charutos vazias, nas quais moravam os mágicos e inesquecíveis rolinhos, companheiros de tantos momentos prazerosos; idem, cartas perfumadas recebidas, com confissões inconfessáveis, e ... dando um pause, deixo espaço para, girando periscopicamente a mente, regredires e trazeres junto a ti, instantes de dez, vinte, trinta e mais anos. Eu sei que os tens e muitos. 

Mergulhes de corpo e alma na piscina da casa, onde anos esquecidos, teus filhos acorriam a teus abraços gritando Painho, Painho! Construída beira-mar, naquele sonho de consumo da baianidade, Itaparica. Ilha, onde incautos holandeses, segundo Ubaldo Ribeiro em “Viva o Povo Brasileiro”, quando aprisionados, eram postos a engordar para ser devorados pelos índios-habitantes, donos daquela terra. 

As fotos daquela casa trazem para agora, aquele coqueiral, aquele mar alcançado num piscar de olhos, aquelas plantas parecendo artificiais de tão bem tratadas e aquelas pessoas que teus olhos tantas vezes viram, muitas já se foram. 

Noutra foto, além de tua ex-mulher, amiga de sempre, com seu inseparável sorriso e sua beatífica paciência - atirando um beijo ao fotógrafo - também reencontras a mãe, a avó, a madrinha e a irmã dela, todas então vivíssimas. 

Patrono de tudo aquilo, não te davas conta da felicidade ali morar. Precisou envelheceres para entender que ela, “a felicidade, está sempre onde nós a pomos, mas nunca a pomos onde nós estamos”. 

Por isso, nos dias que correm, velho e calejado, apercebes-te, reconfortado com o feliz passado, teres no presente uma nova e palpável versão da felicidade. 

Tua atual e derradeira companheira a quem tratas por Linda, confunde os menos íntimos, induzindo-os pensar ser tal seu nome. Certo dia – lembras? – um amigo desavisado, ao despedir-se a tratou por Dona Linda. Não é ótimo? Todavia, bem sabes haver o verso da medalha. Volta-e-meia, brincalhão que és, a tratas por Maria. Basta, o diálogo transitar pelas ocupações e rotinas do lar, coisas de tal jaez. 

Mas, não quero perder o fio da meada. Ah! Estava a dizer-te haveres aprendido ser tão feliz quanto, sem perceber, eras no passado. Minto. Hoje és, sim, duplamente feliz. Pelo passado congelado e pelo presente declarado. Mescladas sensações da meia-idade e da velhice. Vasos comunicantes do viver a vida. 

Assim podes, sem medo, relembrar os caxixis de Maragogipinho, artesanato baiano de barro cozido, espalhados ao acaso naquele verdejante gramado; os guaiamuns azulados, a emergir da areia nos tempos do veraneio; as cordas de caranguejos enlameados, trazidas à porta pelos pescadores; as lambretas cozidas ao bafo, e o sumo salpicado com coentro e gotas de pimentas milagrosas; …  Hás também de recordar, os churrascos naquele espaço próprio a tanto, onde reinavas. 

Reinações de Narizinho. Vovó Anísia, a Dona Benta da tua família, ainda vive na fotografia ora em tuas mãos. 

Sem perceber, aprendestes curtir o desapego material.

Teu pai - eu sei, por escutar muitas vezes – com ênfase, assegurava serem ‘os cabelos o único bem de raiz do homem’. 

Tudo passa. Rápido, como o gole de cerveja que acabas de ingerir. Tão instantâneo, que soa a um segundo o tempo para me ouvires. 

Já vencestes o marco 80 da existência. Estou a par dos artifícios, subterfúgios e cuidados com os quais te proteges, tanto do implacável girar das horas, quanto do tenebroso mau olhado. Isto, tem permitido viajares no tempo. 

Tempostal. Tempo escorrido nessas linhas, teu passado e teu presente, num postal eterno. Enquanto dure, é lógico! 

O agora avisa ser tempo de despedidas.

De ti e dos olhares benfazejos que por aqui passarem.

 



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