segunda-feira, 5 de julho de 2021

Segunda é dia de crônica

Minha mãe oferta rosas aos santos
 
Cultivar o deserto como um pomar às avessas, ensina João Cabral. Minha mãe não conhece o verso, mas é possível que o verso saiba de minha mãe. Ela passou dos 90 anos, mas tem mais juízo e disposição do que eu que sou meio avariado. Todas as manhãs ela sai de casa na cidade e vai para roça - às vezes, vai e volta duas vezes - a cuidar do quintal onde planta de tudo que em se plantando a terra dá. E rosas.
Ela planta rosas. Sempre plantou rosas. Até nos dias em que nada era possível plantar, ela insistiu nas rosas. Às vezes açucenas, hortas, mas, sobretudo, rosas. Amarelas, vermelhas, grandes, pequenas, brancas, rosas. Uma existência inteira escorada nas rosas. Nas tempestades e nas calmarias; nos dias perenes e nos escassos. Se lhe tirassem o jardim, ela plantava em caqueiros; se lhe faltasse caqueiros, ela plantava em baldes. Quando podia, em leiras, com folhas para rezas - ela é dessas - chás, temperos, hortaliças e a via láctea de rosas.
Minha mãe sempre plantou rosas. E sempre riu nas pétalas. Muitas das folhas não passavam de gargalhadas. Era muito fácil de ver. Meu pai não sabia enxergar e achava aquilo perda de tempo, mas deixava. Uma ou outra que podia parecer um choro, uma dor, nunca vingava. Esta, era logo trocada por uma ainda mais viçosa, resistente, bela, de textura delicadíssima e perfume terno, destas que até o orvalho, pela manhã, tem lamento de cair e se arrepende do destino de ser vapor. Eram as minhas preferidas. Umas eram orgulho, ou travessia; outras eram esmero - podadas, regadas, adubadas - e, algumas, eram verdes, apesar dela dizer que nunca plantou rosas verdes. Estas, acho que só eu as vi. Umas eram rosas confessionárias; outras, eram distância e falta, mas todas eram rebentos de sua alma. Às vezes, ela dizia: olha como está linda, olha – admirando - e a rosa, envergonhada, enrubescia.
Depois que meu pai se foi, encompridei seu jardim. Ausências exigem ocupações. Todos os dias ela vai para sua arcaica lavoura de regar o deserto, semear, enredar a terra no ofício de fazer seu pomar avesso e dar cria a rosas. As colhe a cada dois ou três dias para colocá-las aos pés dos santos em seu quarto e na pequena gruta na entrada da casa, onde ficam outros. Minha mãe planta rosas e as oferta aos santos. Algum acordo ela há de ter com eles.
Não sei o que é, mas desde que vi uma rosa verde por lá desconfio que tem algo a ver comigo e os meus. Minha mãe planta rosas. Ela sempre plantou rosas. Até em nosso destino. E eu não sei nada de fé e amor que se pareça com mais do que isto.

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