Ela foi telefonista de uma agência
bancária por um dia, sem que colegas e superiores diretos soubessem de
sua verdadeira profissão. E viu uma colega passar as 6 horas de
expediente sem tomar um gole d'água. "Não porque houvesse alguém
impedindo, mas porque ela tinha tanto medo de perder o emprego, e se se
levantasse não haveria ninguém pra fazer o atendimento, que ela
simplesmente não tinha coragem de ir beber água", conta Adriana.
A
magistrada foi uma das 23 participantes deste ano de um projeto da
Escola Judicial do TRT-RJ que visa a melhorar a empatia dos juízes e
desembargadores. Para isso, eles passam um dia na pele de outros
trabalhadores. Os magistrados fazem aulas teóricas, um dia de
treinamento e depois trabalham por um dia como faxineiros, garis,
telefonistas, cobradores, ajudantes gerais.
"A empatia é essencial para todos, mas para nós especialmente,
diariamente. A gente tem que se colocar no lugar do outro. Se colocar na
pele tanto do trabalhador, quando do empregador, para entender as
dificuldades que eles enfrentam", diz o juiz Thiago Mafra da Silva,
também do TRT do Rio de Janeiro, que trabalhou um dia como gari para a
Comlurb, a empresa de limpeza da cidade.
"O juiz que perdeu a
capacidade de olhar com empatia para o outro, perdeu a capacidade de ser
juiz", diz Marcelo Augusto Souto de Oliveira, diretor da Escola
Judicial e um dos responsáveis pela implementação da ideia.
Na última sexta-feira de julho, Thiago estava entre a
meia dúzia de trabalhadores que faziam a limpeza da praia do Leme.
Morador do Botafogo, ele não teve a experiência de acordar todos os dias
às 4h20 da manhã para ir ao trabalho, como seu colega naquele dia
Alexander Santos Pereira, de 44 anos, gari há dez anos. Também nunca
soube o que é viver com o salário de R$ 1,5 mil que Alexander recebe.
Mas
sentiu por um dia como é passar cinco horas trabalhando sob o sol
quente retirando da areia copos plásticos, restos de comida e bitucas de
cigarro. Sem o chapéu e sem protetor solar, Thiago sofreu insolação.
"Foi bem pesado, cheguei a vomitar por causa da insolação", conta.
Mesmo
assim, Thiago achou a experiência importante e positiva. "É um
exercício importante, porque a nossa carga de processos é muito grande.
Se não tomarmos cuidado, corre o risco de virar automático, de virar só
mais um processo. Sendo que para as partes não é isso, às vezes é uma
das coisas mais importantes da vida delas", diz.
Resistência
Implantado
pela Escola Judicial em 2017, o projeto quase acabou pouco depois de
começar. Muitos juizes e desembargadores não reagiram bem à ideia de
passar um dia em trabalhos com menor remuneração e, na visão deles, de
menor prestígio, conta o diretor da Escola Judicial Marcelo Augusto.
"Teve magistrado dizendo: 'mas eu fiz concurso público para isso'?"
Marcelo Augusto já apresentou o projeto para 24 diretores de escolas e foi muito questionado: "E o que o juiz ganha com isso?"
"Eu
não garanto que o juiz vai produzir estatísticas melhores. Não dá
grife, aderir ao projeto. Não é um bom capítulo do meu currículo. Mas eu
garanto que ele será uma melhor pessoa. E, como acredito que pessoas
melhores são juízes melhores, acho que o projeto é essencial", defende
ele que, além de implementar o projeto, também participou nas três
edições.
Logo no início, um colunista no Rio de Janeiro deu uma
nota sobre a iniciativa com o título que pode ser considerado jocoso
"sandálias da humildade", o que gerou mais repercussão negativa por
parte dos magistrados. Além disso, o nome oficial,"Vivendo o Trabalho
Subalterno", também não foi bem recebido na imprensa. "Ficaram dizendo:
'que nome horrível, que humilhante, não é subalterno', diz Marcelo.
Mas ele defende a escolha. "Poderíamos chamar de
trabalho subordinado, mas, em termos legais, toda pessoa contratada por
CLT é subordinada. Mas nem toda profissão passa pelo processo de
invisibilidade social, onde o outro é tratado sem respeito e, muitas
vezes, simplesmente não é visto", diz. "Também não é trabalho manual,
temos juízes trabalhando como telefonistas e cobradores de ônibus,
cargos que também muitas vezes passam por esse processo."
Apesar
da resistência de muitos juízes, o projeto foi implementado, já que a
escola tem autonomia. No primeiro ano, de 20 vagas disponíveis, só 12
foram preenchidas. Em 2019 foram 24 participantes, alguns até de outros
Estados. Do projeto, resultaram um livro e um documentário – e hoje uma
experiência parecida está sendo feita no TRT-4.
Invisibilidade
O
tema da invisibilidade pública já vinha sendo tratado na Escola
Judicial há tempos, desde que foi introduzido pelo juiz auxiliar da
escola e professor de direito Roberto Fragale Filho. A ideia veio de um
livro do sociólogo da USP Fernando Braga, que trabalhou como gari na USP
durante cinco anos e escreveu sobre a enorme distância que é criada
pelas diferenças entre as classes sociais.
Em seu trabalho, Braga
explica como o não enxergar o outro como uma pessoa por causa do
uniforme é um processo que pode ser em parte inconsciente, e relata sua
propria experiência como gari. Uniformizado, frequentemente não era
reconhecido pelos colegas da USP com quem convivia.
Fragale convidou Braga para participar da formação dos
juízes no tribunal, mas a Escola considerou que as falas sozinhas não
estavam surtindo o efeito necessário – e decidiu aprofundar a
experiência, levando os juízes para mais perto da realidade que quem
trabalha em cargos com menor remuneração.
A principal preocupação,
diz Marcelo Augusto, diretor da Escola, era respeitar as pessoas que
fazem os trabalhos de verdade e evitar que o projeto não se tornasse um
"espetáculo", uma representação superficial de uma categoria
profissional, uma espécie de "turismo".
Para isso, diz ele, os
juízes têm aulas teóricas, passam por um treinamento junto com todos os
outros trabalhadores e, no fim do dia, podem revelar que estão ali para
experimentar a realidade do trabalhador. Depois disso, passam mais dois
dias relatando e discutindo a experiência. No total, são 50 horas de
curso.
"Quem adere ao projeto já está em um processo prévio de questionamento", diz Marcelo. "Então, não é uma Disneylândia,
porque o projeto não goza dos maiores elogios entre a magistratura.
Acho até que é um projeto que não é para todos os juízes. Porque não é a
maioria que quer trabalhar a empatia."
"Esse é um problema de
quem tem poder. Quem tem poder raramente está pronto e aberto para ser
questionado. Para ser chamado a abrir mão de parcela desse poder, ou de
exercê-lo como se ele não tivesse o poder", diz Marcelo. "Abrir mão de
poder, mesmo por um dia, é uma dificuldade humana. Porque o poder é
inebriante."
No início, em 2017, diversas emissoras e programas de
TV queriam acompanhar com câmeras e microfones escondidos, mas a Escola
não autorizou.
"Se eu quero trabalhar empatia com meus juizes, o
colocar-se no lugar do outro, essa coisa de perceber-se um privilegiado,
eu não posso oferecer para ele um prêmio como resultado da adesão. Uma
divulgação, uma capa de revista, um nome na imprensa. Aí, eu perdi o
projeto", diz Marcelo Augusto.
"Eu quero trabalhar o contrário,
eu quero que ele perca o seu lugar confortável. Se eu filmo o cara com
um microfone escondido, uma câmara escondida, aí vai fazer fila aqui na
porta de juiz querendo aparecer no próximo Fantástico."
A BBC
News Brasil teve permissão para acompanhar parte do dia de campo dos
juízes, mas de longe e sem interferir no trabalho – que os juízes depois
relataram em detalhes. Click no link e leia matéria completa no BBC News Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário