segunda-feira, 7 de junho de 2021

João que me levou pra ver o mar

    Há muito tempo, em uma roça muito, muito distante, eu cresci, sem TV, luz elétrica e reality shows. Aos dez anos, para estudar em Salvador, o colégio exigiu uma avaliação admissional que me fez ficar refugiado por um mês na República -  chamemos assim - de meu irmão, em regime de provas e distanciamento social.
    Havia lá, um sujeito chamado João. Por compaixão – que João era desses – ou linhas tortas de Deus, em um domingo, ele me levou à praia do Porto da Barra - não uma praia qualquer. Imagine um tabaréu acostumado a tanques e águas rasas, ver o mar. Não sei bem como é, mas deve ser isso que chamam de comer com os olhos. Mais que ver, mergulhar no mar. Ter um batismo de sal. Eu não sabia nadar, mas João me levou até o fundo, me soltou e disse que me ajudava naquele mergulho. Depois, me comprou um picolé Capelinha de amendoim e pela primeira vez eu achei a vida boa demais.
    Aprovado, fui morar em uma pensão e por mais de trinta anos não vi João. Nas férias, quando meu irmão falava da moradia perguntava por ele e como nunca lembrava o sobrenome dizia: João-que-me-levou-pra-ver-o-mar!
Acontece que a vida não tem fastio de acontecer. Certa vez ao chegar a UTI para o plantão noturno um paciente me chamou. Era João. Contou que era contador da Unimed, professor na Universidade, ativo na Igreja, casado, dois filhos. O mesmo bom samaritano. O examinei com delicadeza - estava mais magro do que lembrava - revi os exames, ajustei os remédios, e virei de novo um menino, cheio de medo da noite que íamos passar juntos. Ele dormiu sereno, mas pela manhã teve uma piora rápida. Ao examiná-lo, murmurou três vezes meu nome, mas não completou a frase. Pedi que não se esforçasse, pois, tinha certeza que iria dizer que eu não tivesse medo de travessia nenhuma. Foi sua noite de despedida.
    Não consigo deixar de pensar nas pontas que amarramos de nossas vidas. Ele me ajudando em meu primeiro mergulho e, eu, em seu último. João que me repatriou do exílio para a vida naquele encontro inicial; eu, que o repatriei da vida para o exílio, no encontro final.
    Sei que responsável, afetuoso, trabalhador, amigo cuidadoso, bom pai, ele se foi tão jovem apenas porque queria ver aquele que é o maior oceano de todos. Assim, quando eu também chegar por lá, eu - que continuo sem saber nadar - não terei dificuldade nenhuma em atravessá-lo. Será só mandar chamar um sujeito chamado João, João-que-me-levou-pra-ver-o-mar !

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