domingo, 31 de outubro de 2021

Não sou baiano, não!

 Dando asas aos dedos, voz aos neurônios e trela à imaginação, parto.

 Calor insuportável ao despontar fevereiro, ano da graça de 2019.

Encontro-me à varanda de minha morada, algo incomum em instantes precedentes ao almoço. Habitualmente, em momentos tais, ora abandono-me ao acaso no bar das doze badaladas; ora esbaldo-me no sítio dos suarentos labores. Em qualquer caso, conto com régua e compasso: tímidas louras e extrovertidas canetas.

 Antes do retorno ao lar doce bar, estive com Tote Leal, amigo das antigas, meu guru especialista em misteres e mistérios da música popular.

 Na casa do invicto solteirão, batizada pelos amigos por Posto Ipiranga, fui em busca de determinado samba, estocado no inesgotável baú musical de Tote.

 Intitulado “...E não sou baiano”, caiu-me como luva, eu, pseudo filho da terra, admirador dos encantos versados em suas centenas de inspiradas letras sobre festas, culinária, religiosidade e tudo o mais.

 Ao aportar à Bahia, no verdor dos 24 anos, promovido à gerência de empreendimento do ramo químico, hospedei-me em hotel ao pé da Ladeira da Barra. Dali, vislumbrava as águas da Baía de Todos os Santos enquanto cumpria o programado pelos superiores hierárquicos gaúchos.

 Proveniente de São Paulo, viera em Kombi, lá adquirida, estrada afora, cheia de equipamentos para o laboratório da empresa.

 De início, como qualquer mortal em terra estranha, abstinha-me de distantes deslocamentos. Para as refeições, valia-me de restaurante vizinho ao hotel: Chez Suzanne onde, pela vez primeira, um tanto temeroso, arrisquei-me a uma moqueca. Quando? Maio ou junho de 1965.

 Família? Ainda pelas bandas do Sul, na expectativa de apartamento, época na qual era inexpressiva a oferta de imóveis. Vivia-se o auge da atividade petrolífera baiana, ser petroleiro era afirmação de diferenciado status social. Salários acima da média em um estado pré-industrial; a turma ligada tanto à extração quanto à refinaria ostentava grandezas. Salvador não dispunha de apartamentos para atender a demanda dos trabalhadores egressos do interior, muitos sem terem visto o mar até então.

 Não nos percamos, retornemos a meu inaugural prato baiano.

 Aquela moqueca de camarões-pistola e a farofa de dendê jamais desembarcaram de minha memória afetiva.

 Haver estado, dias atrás, à praia de Itapema, na companhia da cara-metade, fez-me relembrar Chez Suzanne. Qual a razão? Refestelamo-nos com frigideira de siris catados em um dia, moqueca de camarões no outro. Aí, dá para tirar de letra!

  A primeira moqueca a gente nunca esquece! Algo parecido com o primeiro beijo, o primeiro orgasmo, o primeiro filho, a primeira namorada, o primeiro casamento... Primeiros, mesmo não tenham sido os melhores, são sempre relembrados com carinho.

 O amarelo-alaranjado, cor da cara da Bahia, naipe cromático do pôr-do-sol estival, é o mesmo das perfumadas moquecas e dos dourados acarajés - bolinhos de fogo para comer, em iorubá -, delícias filhas da junção fogo-dendê.

 Agora, assunte, caríssimo leitor, não sou baiano, não.

 Estamos, novamente, no Posto Ipiranga.

 Por interesse na letra do samba-exaltação, Tote teve a delicadeza de acorrer a seus preciosos livros e discos, acervo de fazer inveja a qualquer amante de músicas do passado. Ali, desencantou a obra de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, “A canção no tempo - 85 anos de músicas brasileiras”. 

 Além do empréstimo, deu-me a letra de autor cearense, enaltecendo pontos turísticos em 1945, os quais prosseguem ícones da felicidade de ser baiano.

 Ei-la.

... E não sou baiano

 Bahia, quem pintou sua aquarela

só viu farofa amarela

vatapá e canjerê

Ai, ai, ai, não viu você!

Ai, ai, ai, não viu!

Foi pena não ver

 Não viu sua cidade iluminada

Feira do Sete e Calçada

Nem subiu a Conceição

Seus lindos coqueirais

que cada palma

me falou mais alto à alma

e prendeu meu coração

Não quero dar exemplo

Só contemplo

a verdade, não minto

Falo somente o que sinto

E não sou baiano, não!

Cantei também no Jandaia

e fui contrito ao Bonfim

Foste à Conceição da Praia?

Fiz uma prece por mim

Também da Cidade Alta

no meu peito o que não falta

é recordação

Ai, ai, ai, ai!

E não sou baiano, não!

 Autor/Gravação: Valdemar Ressureição, 1945.

Trio de Ouro (Fase: 1936/49): Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chagas.

 Assim, revisitando coisas guardadas na caixa de sapatos das recordações, ouvindo sambas do tempo das 78 rpm, Tote e eu, dois idosos quase caquéticos, comungamos com o Bruxo do Cosme Velho os efeitos do mau costume de envelhecer.

 Encerro e reitero, não sou baiano, não!

 Sonoros abraços.


 

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