quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Semana da crônica: Orelhone

 

        O melhor de uma viagem, às vezes, é o que sai errado, não pode ser dividido em vinte vezes no cartão, nem rende milhagem. O mico é mais atraente que cenários, comidas, fotografias obrigatórias. Com a vantagem que vergonha não pode ser colada no álbum, nem filmada. Fica na memória para ser contado com alguma autoironia e complacência.

Fonte inesgotável de micos king-kong são viagens ao exterior. Desconhecendo costumes e língua estamos sempre à beira de um conflito internacional. Certa vez, dirigindo para o Vale do Loire, França, paramos em um pedágio com uma cesta, que ninguém sabia como pagar. A fila atrás de nós foi um vexame quilométrico, só resolvido quando um enfurecido francês nos ajudou, exibindo aquele olhar que te faz sentir um troglodita terceiro-mundista.

Nessa mesma viagem acabamos espremidos em uma cabine telefônica – mulheres de longo – em frente ao cassino de Monte Carlo, para  fugirmos da chuva. Isto por termos entrado no prédio de estacionamento pelo guichê de saída e ficarmos meia hora aos gritos, pelo interfone, com o computador, até que apareceu um guarda – eu desejava a Caroline de Mônaco – e em língua gestual nos ameaçou de prisão. O risco era real porque viajava conosco uma idosa, mãe de colegas, desbocada feito uma rameira, que xingava o guarda de todos os palavrões que a última flor do lácio já criou.

Há desastres como o de uma conhecida que embarcou em um avião errado e recebeu uma vaia e de um amigo que bebeu como sopa uma  cumbuca com água e detergente para lavar as mãos. Tive um parceiro de viagem que fez cirurgia do estômago e teve ressaca intestinal após comer um cordeiro patagônico – prato preferido dos tiranossauros. Ele parava a VAN com o grupo – aterrorizado – a cada liberação de gases de suas enzimas digestivas. Certos vinhedos de Mendoza nunca mais foram os mesmos.

Mas, impagável, somos nós maltratando o espanhol. Falo meu português bem lento para o hermano assimilar, mas o brasileiro aprende  “saca la foto”, vira poliglota e a partir daí fala uma língua de fronteira, embaralhando terminações vocais, num mimetismo polifônico indecifrável. Ou fala alto, imitando o sotaque, obrigando-os a ouvir quero “dôs”, como se dois fosse incompreensível. Afinal, espanhol é botar a língua pra fora e mandar ver. “Je ne parle pas espanhol, pero mi português is very fueda”.

Há uns anos, na Argentina, estava na portaria do hotel, quando um cliente começou discutir. Alto, suando, gesticulando como Maria Bethânia cantando Carcará, o brasileiro vociferava no dialeto de Tarzan.

- Você não intiendê? Não falar mí língua?

O porteiro – um armário – balançou a cabeça e foi cuidar da vida. A esposa sugeriu que ele telefonasse para o guia da agência. Foi aí que o marido atravessou o saguão lotado, aos berros, gesticulando com o dedo mínimo e o polegar em riste, os demais dobrados, em direção ao estupefato funcionário.

- Eu quero um orelhone, quero um orelhone...

Se não foi deportado deve estar lá até hoje esperando o porteiro entender.

 


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