segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Crônica de segunda

Estórias Domésticas I

Pense num cara desligado. Pensou? Valmir era mais. Até hoje eu não sei ao certo de onde ele veio e nem pra onde foi. Sei apenas que se empregou como doméstico na casa dos meus pais, e é só. Eu era bem garotinho, mas não dá pra esquecer. Eu criava um casal de periquitos, desses verdinhos, chamados cuiubinhas, e pedi a Valmir que fosse comprar milho painço para os bichinhos. Ele voltou umas quatro horas depois trazendo dois abanos.

Ele era assim. Esquecia o que tinha que fazer, mas não voltava de mãos vazias. Certa vez, minha mãe mandou ele comprar alguns carretéis de linha. Ele chegou tarde, já com a noite fechada, trazendo um enorme pacote de pães. Assim era Valmir. Ia levando sua vida na maciota, a gente às vezes se zangava com sua malemolência, suas trapalhadas, mas ninguém tinha coragem de despedi-lo.

Foi Pipiu Bahia quem teve a ideia de alfabetiza-lo. Naquela época, Arnold Silva, seu tio, era candidato a prefeito e Pipiu, que namorava Ada, pediu que ela o alfabetizasse para que pudesse tirar o título de eleitor e votar em Arnold. Assim começou a tarefa inglória de alfabetizar Valmir.

Ada preparou uns cadernos com folhas de papel pautado e começou a alfabetizar Valmir. Depois passou a ensinar-lhe a formação de sílaba e, finalmente, palavras e frases.

Principalmente, ensinou-lhe a escrever o seu próprio nome. Aliás, um nome com sobrenome inventado, pois ninguém sabia os nomes dos seus pais (nem ele), e foi assim que foi registrado com o nome de Valmir dos Santos. No cabeçalho de uma folha Ada escreveu o nome dele e pediu que ele copiasse várias vezes, até encher a folha, com letra cursiva, à guisa de assinatura.

Finda a tarefa, ela disse: Bem, Valmir. Agora que você já sabe escrever o seu nome, assine aqui nesta folha, pra gente ver como é que ficou.

Ele ficou ali, olhando para o telhado, mordendo a cabeça do lápis, olhando para a folha em branco, meditando profundamente, como se a folha fosse uma esfinge a desafiá-lo: “Decifra-me ou devoto-te!”

Impaciente, Ada cobrou: Vamos rapaz, escreva o seu nome! E Ele, com toda a paciência que Deus lhe deu, confessou não ser capaz de executar tamanha tarefa. “Mas, menino – disse Ada - ainda mais irritada. Você acabou de encher uma folha de papel pautado com o seu nome, como é que você diz que não sabe? E ele, como que iluminado, com um brilho nos olhos, exclamou: “Ó! E aquilo era meu nome?”

Valmir sabia que o nome da sua mãe era Fausta, mas não lembrava o nome do pai. Aliás, uma vez ele perguntou a Ada se Fausta se escrevia com H. Sobre o pai, ele lembrava apenas que era o nome de um mês. E toca a gente a imaginar. Seria Augusto, Júlio? Nada. Alguém até lembrou-se de Setembrino, mas também não era. O único parente que se conhecia de Valmir era um tio, um velho marceneiro que trabalhava na rua de Aurora. E alguém foi lá, saber se o velho sabia o nome do pai de Valmir.

 “Olha moço, a gente tá querendo tirar os documentos de Valmir, mas precisamos dos nomes do pai e da mãe dele. A mãe ele disse que é Fausta, mas o pai ele disse que o nome de um mês, só que a gente não descobriu que mês é esse.” O velho coçou a barba e disse: “ O nome do pai dele é Maximiniano, mas a gente só trata ele por Mauço.”

 NE: Publicada no livro Sempre Livre (2010)

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