segunda-feira, 22 de março de 2021

Filhos, eu sei, não voltam para casa

Criado na roça - minha aldeia-, à luz do candeeiro, aos dez anos fui levado por meu pai para Salvador, em busca de uma educação melhor. Morei sozinho em uma pensão, afinal, como ele dizia, o que precisava ser feito tinha de ser feito. Daí fui para Brasília, São Paulo e voltei para Feira. Mas não para a casa de meus pais.
Criar filhos é esse enredo ao avesso, em que vamos desfiando a dependência, nossa e deles, ao inverso. E essa permuta, grandiosa e inimitável, vai nos fazendo melhor, mesmo sem intenção. Não são apenas as memórias e o amor indecente e sem segundas intenções dado a alguém, mas caminhar para o altar que te consagra e realiza. É a oportunidade, até mesmo, de nos refazermos dos erros de nossa edição. É ser um tanto de Deus, nos roteiros e limites, embora, por vezes, esqueçamos que os filhos nos decifram em silêncio e nos criam, mas à sua própria imagem e leitura.
Adivinhássemos antes, o que só sabemos muito tarde, perderíamos o pudor e renunciaríamos mais as exigências de fora em troca das especiarias que são seus abraços e descobertas. E, dormiríamos todos os dias feito cúmplices dessa feitiçaria.
Claro que criar filhos é, também, doer suas dores, que o mundo que lhe damos não é domável. É perder o sono, abraçado em receios, nas febres ou ausências, e andar de mãos dadas em uma bicicleta ou sonho porque isso é o mais próximo que podemos chegar de sermos eternos. É fazer escolhas por eles- nem sempre as melhores- esquecendo que a vida só se faz para seu dono, mas é do ofício.
Assim, cruzaremos a infância e adolescência -o leite e o mel do tempo- às vezes sem perceber a inexorável redução da dependência conosco. Vivemos acostumados com o barulho de suas vozes, a agenda de compromissos- que ser jovem, hoje, exige agenda lotada-, a ocupação expansiva da casa, da cama e dos espaços de nossas vidas, achando que será para sempre.
Esquecemos que - e ninguém nos prova o contrário- filhos crescem. E partem. Partem numa despedida sem fim, deixando em seus quartos um troféu das competições, álbuns incompletos de figurinhas, adesivos, uma última risada, um diário esquecido, um vestido abandonado por ser infantil, um vazio que parece nunca acabar de ser olhado.
Um dia- te aviso- você irá levar seu filho mais velho para a faculdade e lembrar-se-á do dia que você também partiu. Pensará em inúmeros conselhos que acabará não dando, esquecidos no abraço. Apenas rezará, feito crente, por ele. Na volta, entre feliz e partido, viverá de acomodar sua falta. Dois anos depois sua filha irá embora e você chorará sua ausência às escondidas, porque apartar, disse-me meu pai, quarta, quando fui vê-lo no cemitério, precisa ser feito.
Sem as obrigações que faziam sua devoção os horários se multiplicarão e a casa silenciosa sentirá o revés, como uma árvore sem vento, sem folhas, sem deveres. Parecerá que não abriga, nem sombreia. Será preciso, então, reinventar sua alma e lar, sem bênçãos ao dormir. E os medos serão só seus, sem a redenção matinal de esperança que olhar os filhos te trazia.
Encontraremo-nos nas férias, viajaremos, faremos muitas refeições juntos, e, um dia, os netos atiçarão a árvore, mas eu sei- eu também não vim-, que filhos não voltam para casa.

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