Carpins
Um
dos passatempos de meus filhos, quando pequenos, era fazer-me ler em voz alta, suas HQS.
A dupla divertia-se com minhas diferenciadas entonações e pausas dramáticas ao
interpretar os personagens Cebolinha, Cascão, Chico Bento, Mônica, et
céteras. Com isso, sem eles aperceberem-se, ensinava-lhes pelo amor à
leitura, o amor à escrita, a impostação de voz, a teatralidade, a sinonímia, a
dicção. Coisas simples, de certa importância na vida adulta.
Certa feita, um deles indagou-me o significado da palavra “estepe” surgida no texto da historinha. Expliquei-lhe tratar-se de termo sulista, não frequente no dialeto das bandas nordestinas: aqui, estepe é “força” ou “pneu de socorro”.
No mesmo instante, fui
acorrido por lembrança de fato enterrado no passado e sem contra resposta
justa, no tempo devido, por ignorância minha.
Ano da graça de 1962.
Fora, profissionalmente, transferido dos pagos gaúchos para a Paulicéia, então
não tão desvairada. Entre outras funções, seria secretário do gerente da filial
paulista, pessoa da qual guardo inesquecíveis momentos. Chamava-se Paulo
Viotti. Dono de invejável fluência verbal e rico vocabulário, não admitia
rascunho prévio de suas cartas. A diária correspondência era ditada - eu, à
máquina datilográfica, ainda não elétrica, papel carbono para as duas cópias de
praxe. Perfeccionista, patrulhava erros do vernáculo. Formado em química,
estava na profissão errada. Grande mestre.
Ria-se quando eu,
então menino aos 21 anos, pouco vivido e criado no dialeto gaúcho, referia-me
às ‘canetas automáticas’. Corrigia; para ele eram ‘canetas-tinteiro’. Um dia,
disse-lhe necessitar de um par de ‘carpins’. Nada entendeu, como devem estar nada
entendendo muitos de meus leitores.
Expliquei tratar-se de
meias masculinas. No sul da época, ao utilizarmos a palavra ‘meias’ estávamos
nos referindo, apenas, às usadas pelas mulheres. (Ah! As meias de náilon com
suas ligas!) Homens usavam ‘carpins’. Viotti, divertiu-se a valer com minha
explicação, eu quedei-me sem resposta.
O fato ficara travado em
minha mente. Donde – cáspita - gaúchos daqueles tempos e de certas regiões, haviam
tirado o termo ‘carpim’ para conceituar a meia masculina?
Anos mais tarde,
descobri ter sido a corruptela da grafia e do significado de um galicismo. Do
francês escarpin nos chegara escarpim, palavra que tinha como uma
de suas acepções, “calçado de tecido que se usava por debaixo das meias”.
Tarde demais. Eu já
morava na Bahia e Paulo Viotti, fulminado, ainda bastante jovem, por um câncer
de próstata, fora-se.
Valeu, meu Viotti querido! Estou calçando um novo par de ‘carpins’ comprado nesta semana e, sempre lembrando de ti, acendo um charuto em tua homenagem!
Hugo A. de Bittencourt Carvalho, economista, cronista, ex-diretor das fábricas de charutos Menendez & Amerino, Suerdieck e Pimentel, vive em São Gonçalo dos Campos – BA.
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