segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Crônica de segunda

 

Estória de uma cirurgia

         Como eu falei antes, eu nasci com um defeito de fabricação, uma estenose pulmonar. É o que o povo chama de “Sopro no coração”, um estreitamento da válvula mitral que faz com que o sangue passe apertado. Assim o coração em vez de bater (bombear o sangue) ele sopra, esguicha p sangue. Além desse defeito, eu tive a sorte de, ainda criança, ter todas as doenças que as crianças da minha época tinha. Sarampo, catapora, papeira e  tudo mais que eu tinha direito. Inclusive asma, é claro. O médico pediatra da família, Dr. Félix Santana, um médico boa praça, vindo lá do Sul da Bahia, disse que se eu passasse dos cinco anos, sobreviveria.

         Sobrevivi. Mas, aos 14 anos contrai uma nefrite. Uma doença nos rins para a qual não tinha remédios na época. O único tratamento, segundo o médico, era regime alimentar e repouso absoluto. Não podia me levantar nem para tomar banho. E assim, eu passei seis meses numa cama, comendo arroz branco sem sal, carne grelhada e frutas. Nada com um mínimo de gordura era permitido.

         Vocês podem imaginar no espantalho em que me tornei. Eu já era franzino, pesava 54 quilos e criava cabelo. Quando eu sarei e meu irmão me levou para cortar os cabelos, antes passou pela loja dele. O gerente, Fernando Peixoto, com quem eu havia trabalhado por quase dois anos, não me reconheceu, e perguntou: “Aquele é Cristóvam?”

         O bom foi que, a partir daí, minha saúde se fortaleceu e nunca mais eu tive sequer uma dor de cabeça. A asma já havia sido curada, graças a ingestão de centenas de garrafinhas de Emulsão Glicerofosfatada de Pequi”, fórmula obtida do Pequi, essa santa fruta dos nossos sertões. O sabor era horroroso, nenhuma criança normal gostava daquilo. Mas eu nunca fui uma criança normal, e tomava o remédio e ainda lambia a colher.

         Mas, permanecia a estenose. O médico me proibiu de caçar. Jogar futebol, nem pensar. Aliás, ele não queria nem que eu assistisse aos jogos, pois não podia ter emoções fortes. Eu, é claro, desobedeci solenemente as instruções. Caçava, jogava bola, ia aos jogos e, pior ainda, aos 13 anos havia começado a fumar e f.... É, eu fui uma criança precoce.

         E por ai foi a vida, virei atleta, praticando judô e jogando futebol de salão três vezes por semana, e ainda achava tempo para jogar futebol de campo aos domingos. Nas caçadas eu andava dezenas de quilômetros por dia com um mínimo de cansaço. Mas, quando foi um dia, casei-me. Vieram os filhos. E agora? Dr. Mário Sérgio queria que eu fizesse logo a cirurgia do coração. “Quanto mais velho você fica, mais lenta será a recuperação. Eu estava com 24 anos. Aos 25 anos dei entrada no Hospital Santa Isabel para resolver de uma vez o problema do sopro. Como já disse, nada comigo é normal, e uma cirurgia também não poderia ser.

         Por sugestão de Dr. Mário Sérgio, já que eu estava providenciando uma papelada do INPS, eu entrei no hospital como indigente, para fazer um cateterismo. “É bobagem – dizia ele – você entra num dia e sai no outro.” E assim eu permaneci quase duas semanas na ala de indigentes, sob a alegação de que “a máquina estava quebrada”.

         E aí, toda hora chegavam médicos para me examinar. Mas foi só até eu descobrir que eu não eram médicos, eram estudantes de medicina. Estavam me fazendo de cobaia. Chutei o pau da barraca e exigi que me deixassem sair. E deixaram, mas não antes o médico me ameaçar, dizendo que, se eu saísse, nunca mais voltaria ali. Sai feliz, pois pude conviver com pessoas muito humildes, e descobri como era o ambiente numa ala de indigentes. Aquilo, com certeza, me acrescentou algo de bom.

         Dias depois eu voltava, já com a papelada em dia, fiquei numa enfermaria e fiz o cateterismo. Dias depois, fui internado para fazer a cirurgia. Para garanti a segurança da cirurgia, os médicos pediram doações de sangue para o banco do hospital. Eu era doador de sangue, podia doar para todo mundo, mas só podia receber o meu tipo, O negativo. A família foi à luta e arranjou doadores. Até apareceu lá no apartamento um rapaz, simpático, delicado, para me conhecer. Queria doar sangue pra mim. Eu agradeci muito, mas disse pra ele que a cota já estava completa. Eu, em?

         Vieram duas enfermeiras e começaram a depilar o meu corpo (tricotomia – cirurgia também é cultura). Foram tirando todo o pelo do meu corpo e quando chegaram nos países baixos, eu disse pra elas: Não precisa segurar ele não que ele sabe ficar em pé sozinho. A malvada então jogou éter na cabeça do bichinho, que ficou todo murcho, quietinho. Coitado. Depois me vestiram uma camisola. Eu estava pronto para ir para a sala de cirurgia.

         Contudo, parecia que eu estava indo para o abatedouro, se fosse observar a fisionomia dos meus familiares. Pipiu Bahia tava com uma cara de dar dó. Tentando quebrar o gelo, eu disse a ele: Não mate as perdizes todas não que eu ainda volto pra caçar com você! Pra que? Ele desatou em choro. A emenda foi pior do que o soneto. Ou melhor, como ele mesmo diz, a amêndoa foi pior do que o sorvete.

         E assim, lá fui eu para a sala de cirurgia, entre choros e rezas dos meus familiares. Na sala, eu me senti mais à vontade, pois a equipe médica era composta por gente muito legal. E enquanto faziam os preparativos, eu fui conversando com eles, contei algumas piadas, e disse: Olha, vocês já depilaram meu corpo, me vestiram uma camisola e queriam que eu aceitasse sangue de gay. Aproveitem e liguem as trompas. Acho que eles não gostaram da piada, pois me mandaram cheirar alguma coisa e eu apaguei.

         Acordei nu, todo amarrado, cheio de tubos e fios peço corpo, e na cabeceira, acima de minha cabeça, um painel cheio de luzinhas piscantes que faziam um barulhinho irritante. Deus do céu, não desejo aquilo pra ninguém. Toda hora alguém me perguntava se eu já tinha tossido (era pra fazer o pulmão se alargar, já que havia se comprimido durante a cirurgia). Mas aquilo já estava me chateando, e uma hora perguntei: que diabo de hospital é esse que a gente só está bem se estiver tossindo?

         Mas, quando eu vi uma cara morrer junto de mim, eu me dei conta de que, se não obedecesse direitinho aos mandamentos dos médicos, eu também corria o risco de embarcar depois de ter passado pelo pior. Me tornei o paciente mais disciplinado da UTI.

         De volta a enfermaria, eu estava dormindo e, não sei como me virei de bruços. Quando acordei quis me desvirar e, instintivamente, apoiei a mão na cama e fiz força para me levantar. Dei um grito que atraiu todo mundo. Os enfermeiros me colocaram de papo pro ar e me deram remédio para aliviar a dor. Vocês estão rindo porque não sabem o que é ter o osso do peito serrado e antes de cicatrizar tentar fazer um mínimo esforço. Dói, meus caros, e muito.

         Alguns dias mais e eu já estava me levantando sozinho, tomando banho e andando pelos corredores, contando piada para os outros pacientes e tentando levantar o astral de quem estava com medo de cirurgia. Um dia, de madrugada, olhei de lado e minha mulher estava dormindo de mau jeito. Eu já estava ali há cerca de 15 dias. Fui lá e tirei um pedido. No dia seguinte uma médica veio para me dar alta e me dava algumas instruções. Ela disseque, se eu quisesse, já poderia dar ter “atividade sexual”. Poderia ter. Já tive. Disse eu. Ela me chamou de maluco e me mandou embora.

        NE: Crônica publicada no livro Sempre Livre (2010)

        

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