* Limbo *
Após incontáveis experiências existenciais, pagão de muitos pagos e crendices, alcancei o limbo – selenita mar de tranquilidade – onde me permito incorporar o imaginário e controlar a fatal mania de envelhecer.
Parida a noite, o dia desponta florido.
Afio a pena, recorto ideias e sensações regadas pelo orvalho da madrugada, ainda a gotejar nas pétalas das rosas-do-deserto.
Cá no limbo, a agradável existência a par da monótona senilidade, carrega a alma do Ulisses de Eça de Queiróz em seu magistral conto A Perfeição.
Homem-velho, superados os desafios, as fruições e as humanas vaidades – amores voláteis, hotéis estrelados, conúbios e batismos, missas e formaturas, linho branco às sextas-feiras, paixões arredias, lautos jantares, veraneios ao mar e à serra, doses etílicas vespertinas, charutos baianos - aprendi a regozijar-me com as delícias do ser, contraponto às do ter.
A pressa do viver também evolou-se. O ontem e o hoje, frações integrantes do mesmo espetáculo, soam antagônicos, como adversos são o bemol e o sustenido, partes da mesma partitura.
Hoje, se choro, as lágrimas são insípidas; se escrevo, faço-o com mão calejada; se rio, rio de mim mesmo.
A certa altura do viver, é mágico o sentimento de confrontar atos rotineiros ao longo da linha do tempo. Mais ainda quando, ante a perspectiva do amanhã, somos assaltados por algo assemelhado a uma saudade do futuro: saudade daquilo ainda não (re) acontecido versus a perspectiva de jamais voltar a se repetir.
Retornemos ao velho Eça.
Ulisses naufraga ao retornar dos embates havidos em Tróia, mas consegue alcançar Ogígia, ilha-encantada de “inefável paz e beleza imortal”, morada da deusa Calipso: ali a perfeição em tudo transborda. Nada, absolutamente nada de tristeza, doença, dor, velhice, morte.
O herói da saga converte-se no mais feliz dos mortais junto à sedutora Calipso, “deusa radiosa que o recolhera e o amara”. Após sete anos, “malgrado viver em mar de rosas”, percebe-se infeliz por “eternamente preso, sem amor, pelo amor de uma deusa”.
Sentado a uma rocha, “gordo”, “com a barba enterrada entre as mãos”, relembra “numa escura e pesada tristeza”, ao partir para Tróia, haver deixado a mulher, Penélope, e o pequeno Telêmaco.
Calipso surpreende-se com seu amoroso cúmplice disposto a enfrentar procelas em direção à família. Indagado quanto às razões – incompreensíveis para ela – Ulisses alega padecer de saudade e de estar farto de tanto prazer e paz.
Saudade de quê? Pergunta a deusa, ante a insólita cena do herói aprontando-se à viagem.
Tenho saudade – contesta ele – de um velho encarecendo ajuda, de uma flor caída ao solo, do choro de um recém-nascido, de folhas fenecidas carregadas pelo vento, de um aleijado estendendo a mão, de pedras sobre túmulos à beira dos caminhos, tenho saudade, sim, saudade de conviver com a própria morte.
Na verdade, Ulisses rememora ausências incendiárias de sua imaginação. Sua mente estava onde ele não está. Tais privações levam-no a encontrar defeitos na perfeição, algo corriqueiro em nossa existência.
A vida é assim mesmo, enfrentamos dificuldades em fazer coisas simples como acomodar-nos e deixar a mente vazia. Não pensar é dificílimo, assim não vivemos o presente; nossas cabeças costumam frequentar lugares, como aconteceu com Ulisses, no passado ou do futuro, aonde nossas ideias nos levam.
Ao início, declarei ser a pressa do viver, para mim, coisa do passado. Devo, todavia, acrescentar: atingir tal estágio requer treinamento para controlar a prática da ininterrupta atividade mental.
Nunca desligamos os neurônios, isso dificulta a redução da velocidade.
A pandemia de 2020/21 forçou-nos ao exercício de uma vida mais lenta e muitos, como eu, experimentam os alentos de pisar no freio: mais tempo para debruçar-nos nas janelas do mundo.
A redução drástica da ansiedade é a melhor consequência. Viver ao limbo, desacelerar resulta em paz interior, tempo e espaço para refletirmos.
Hugo A de Bittencourt Carvalho [email protected]
Revisão: Rosa Fauaze [email protected]
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