segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Crônica de Segunda

Gaguinho

                O nome dele é Lourival, mas desde criança a gente só conhece, por motivos óbvios, como “Gaguinho”. Curiosamente ele hoje não gagueja mais, mas o apelido permanece. Era apaixonado pelos filhos e pela mulher, mas costumava dar “pulos” e terminou se separando. Fumava, bebia muito, mas, notícias que me chegam de Salvador, onde vive atualmente, dão conta de que abandonou os vícios.

         Mas o melhor no Gaguinho, além da sua solicitude, era sua alegria, seu sarcasmo, suas estórias sempre hilárias. Depois de farra o que o Gaguinho mais gosta é de praia. E o curioso é que ele prefere ir à praia quando o tempo está frio. “Não tem aquela multidão, aquele calor danado”. Diz ele. Entende de tudo um pouco, pelo menos é o que afirma. E também se meteu a fazer de tudo um pouco e foi assim que surgiram várias estórias sobre ele.

         Certa vez ele entrou no meu escritório pedindo apoio para um projeto. Era o seguinte: A sua esposa, artesã de mão cheia, fabricava alguns bibelôs que faziam sucesso entre turistas. Havia até um viajante que vinha de Sergipe comprar os bonecos pra vender nas lojas de artesanato de Aracaju. Sabendo disso, ele decidiu ir ele mesmo passar a comercializar os bonequinhos em outras cidades. Veio então me pedir apoio para custear as primeiras viagens, e escolheu Porto Seguro como ponto de partida.

         Era mês de junho, e conhecendo bem ele, manjei logo a segunda intenção da viagem, que eram as praias. Do jeito que ele gosta. Frias e vazias. Então eu argumentei: Acho boa a sua ideia, mas, nesta época, não tem turista em Porto Seguro. Até quem tem negócios por lá, fecha as portas e vai curtir férias. Porque você não começa viajando para Salvador e tenta vender sua mercadoria nas butiques e lojas dos shoppings? O investimento é menor e você já começa a formar uma freguesia. Ele concordou, a princípio, mas disse que iria pensar. Está pensando até hoje.

         Estávamos num outro dia, reunidos no Boteco do Vital, nosso reduto socio/etílico/cultural, e ele encheu o saco de todo mundo falando das qualidades e da tal submissão da esposa às suas vontades. Já passava do meio dia quando ele me convidou pra ir até a casa dele, distante do bar mais de dois quilômetros. O detalhe é a gente estava a pé. Mas, como era um sábado, e havia muitos bares no caminho, eu topei a parada.

         Já perto da casa dele, muitos bares depois, resolvemos tomar a saideira antes do almoço. O dono do bar tirou do freezer um baita tucunaré e disse que estava vendendo. Nós compramos o peixe e ele foi do bar até em casa falando maravilhas que sua “Nêga Veia” iria fazer com aquele peixe. Quando chegamos ela estava sentada na sala, com um filho pequeno no colo, e ele foi mostrando o peixe e dizendo: “Olha bem! O que eu trouxe pra gente”! “Tire isso daqui – gritou ela – Você sabe muito bem que eu não trato peixe! Pode procurar quem trate que eu mesma não pego nisso”!

         Diante da reação da “Nêga Véia”, ele só balbuciava: mas, mas, mas... E eu, que não sou besta, saí correndo, peguei o peixe, fui pra área de serviço, tratei o bicho, dividi no meio, e fui correndo pra casa, onde lá sim, minha “Nêga Véia”, que não trata peixe, mas prepara muito bem, fez uma deliciosa moqueca.

         Uma outra paixão do Gaguinho, depois da “Nêga Véia”, é claro, eram veículos automotivos. Fosse sedan, utilitário, caminhonete ou caminhão, o negócio dele era pegar no volante e sair por ai. Ele inventava os artifícios mais engraçados para poder dirigir um carro. Certa vez, voltando de Salvador na carona do primo, começou a soluçar. E o soluço não passava. O primo então perguntou: “Que soluço brabo é esse, Gaguinho?” Ele respondeu: “É patológico. Só para se eu dirigir”.

         Uma outra vez, estávamos eu, um primo dele e ele numa praia em Salvador, e tudo estava muito bom. Mas, ele queria ir a São Francisco do Conde. Nós outros, porém, queríamos ficar em Salvador. Foi aí que ele me saiu com esta:  “Vocês têm que aprender a viver em Sistema de Grupo. Se não está bom pra um, não está bom pra ninguém”. Eu até argumentei se não seria ao contrário. Se está bom para a maioria, está bom para todos. Mas ele não concordava.

         Ele ficou emburrado, e como já estava ficando tarde, decidimos ir para São Francisco do Conde. Chegamos lá, nos instalamos no bar de Cigarreiro e ficamos ali, bebendo umas e outras e comendo camarão e peixe frito. Quando chegou a hora de voltar para Feira de Santana, ele já estava de pileque e eu disse: Olha, dá a chave do carro pra Bel que você nem eu estamos em condição de dirigir. Ante a possibilidade de não ser ele a dirigir, ele teve a ideia: “Por que a gente não dorme aqui?”

         “Tá doido! – disse eu – A casa de teu tio não cabe mais nem um passarinho. E eu lá vou deixar de estar na minha cama, pra dormir no chão, sem necessidade?” “Tá vendo ai? – argumentou ele – Vocês não sabem viver em Sistema de Grupo.”

 

NE: Publicada no livro Sempre Livre (2010)

 

        

        

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