Estórias domésticas II
Eu já contei aqui a estória de Valmir, um empregado doméstico que apareceu na casa dos meus pais. Naquele tempo, era comum se ter empregados e empregadas domésticos. As mulheres, hoje chamadas de “Secretárias de Madames”, cabia, e ainda cabe, o trabalho mais feminino, tipo varrer a casa, tirar o pó dos móveis, arrumar camas, por a mesa, cozinhar, lavar pratos, etc.
Aos empregados, as tarefas mais pesadas, tipo aparar a grama, lavar sanitários, fazer emendas hidráulicas ou elétricas, capinar quintais, etc. Eram também como uma espécie de “office-boys”, sempre prontos para realizar mandados.
Essas pessoas, de um modo geral, eram oriundos da zona rural e, por conseguinte, simples e humildes, e não muito afeitas às modernidades das cidades. Eu sempre tive um carinho muito especial por eles, que povoavam minha mente infanto-juvenil com estórias mirabolantes e fantasmagóricas, de bois encantados, princesas, lobisomens, caiporas e mulas sem cabeça. Na minha adolescência, deixei o povo da casa furioso porque resolvi colocar-me no lugar deles e passei a executar tarefas domésticas, para entender como se sentiam. Acreditem, não é boa coisa.
Na sua simplicidade eles também me divertiam quando se atrapalhavam, principalmente, por não compreender certas coisas bem comuns a quem vive na cidade. Apareceu lá em casa um molecote chamado Teodorico, que se tornou mais um meu companheiro de brincadeiras do que exatamente empregado doméstico. Um dia Iara o chamou e mandou que fosse até a casa de Ada, que era bem próxima: “Vá lá e diga a dona Ada que é pra ela me mandar a receita do arroz de forno”.
“Durico” – era como eu o chamava – Arregalou os olhos, espantado, mas não se fez de rogado. Chegou na casa de Ada, ainda com os olhos arregalados, e falando rapidamente, em frases entrecortadas, pronunciadas por entre os dentes: “Dona Ada... Dona Iara disse que é pra senhora mandar a receita do... arroz de corno”.
Foi também na casa de Ada que presenciei um diálogo interessante. Ela tinha uma empregada que não dormia lá. Ela chegava às seis da manhã e à tarde ia para casa, onde morava com um irmão. Um belo dia ela não apareceu para trabalhar e nem deu satisfação. No dia seguinte, ela simplesmente chegou começou a trabalhar, preparando o café da manhã, como se nada houvesse acontecido. Quando nos sentamos à mesa e ela veio servir o café, Ada perguntou:
- Tonha! Por que você não veio ontem?
- Sabe, dona Ada, é que meu irmão arrancou um dente e eu tive que ficar com ele.
- Ora, menina. Que idade tem esse seu irmão, que precisou que você ficasse com ele só porque arrancou um dente?
- Ele já é homem feito, dona Ada, mas é que ele arrancou o dente no cru (sem anestesia, dente inflamado).
A gente até que entendeu, mas Pipiu arregalou os olhos e perguntou:
- Aonde...?
Foi o professor e poeta Antônio Lopes, que em vida foi assíduo frequentador do Boteco do Vital, quem me contou esse diálogo presenciado por ele, entre patroa e empregada. Segundo ele, a empregada varria o passeio quando a madame chegou até à porta indagando:
- Menina, pra que você deixou uma boca do fogão acesa, sem ter nada para cozinhar?
- Oxente! A senhora não disse que é pra economizar fosco?
Empregadas domésticas eram assim mesmo. Hoje elas estão mais espertas. Algumas até espertas demais. Mas eu tenho uma em casa que ainda guarda a simplicidade e inocência das antigas domésticas. Ainda outro dia, meu filho Leno, de dez anos, quase não tocou no prato de feijoada que Maura havia colocado pra ele. A empregada então veio me falar:
- Olhe seu Cistóvam, Leno não comeu a feijoada, vou botar pro cachorro.
- Uma ova. Eu mordo ele se ele tocar nesse prato. Deixa aqui que eu mesmo como. Vê lá se vou fazer feijoada pra dar a cachorro.
-Oxente, seu Cristóvam. Ele também é humano, igual ao senhor!
NE: Publicada no livro Sempre Livre (2010)
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