segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Crônica de segunda

 

O dia em que vim ao mundo

          Na apresentação que fez do livro “A Levada da Égua & Outras Estórias”, o jornalista Edson Borges disse que ficava a imaginar como eu, se pudesse, contaria o meu próprio nascimento, enriquecendo a narrativa com os nove meses em que, muito preguiçosamente, habitei o ventre de minha corajosa mãe. Isso me levou a vasculhar os mais recônditos nichos da mente em busca de lembranças antigas. 

         Bem. A lembrança mais antiga que me acorreu foi um forró, na cidade onde moravam meus pais, no alto sertão baiano, festa esta em que fui com meu pai e voltei com a minha mãe. De lá pra cá, isso o Edson acertou, eu fiquei ali, preguiçosamente, por nove meses, imaginando como seria minha chegado ao mundo. Se eu não fosse tão cuca fresca, já nasceria paranoico. Afinal, você está ali, sem saber coisa alguma de nada. Você tanto pode dar de cara com uma mãe dedicada e carinhosa, no seio de uma família bem estruturada, como pode encontrar com alguém que vai te jogar no vaso sanitário. É mole?

         Mas eu não. Eu sou muito tranquilo quanto aos dias que virão. Afinal, como meu próprio nome significa, eu sou Cristão e por conseguinte sigo os ensinamentos de Cristo, que disse: “Cuida do dia hoje, pois o de amanhã cuidará de si mesmo”. E quem sou eu pra desobedecer ao Homem? Por isso fiquei lá quietinho, certo de que chegaria bem, como cheguei. Fiquei apenas um pouco frustrado porque meu pai, como delegado do lugar, bem que poderia ter contratado uma banda de música pra me recepcionar. Mas, tudo bem.

         Ainda buscando lembranças, outras me acorreram, do tempo em que fiquei ali, no bem bom, desfrutando da quenturinha do ventre de dona Dezinha. E dali eu ouvia tudo que se passava lá fora, e sentia as mesmas emoções da minha mãe: Raiva, quando meu pai chegava da farra bebum, cansaço, quando carpia a roça, carregava sacos de feijão, catava lenha ou pilotava o fogão e a vassoura.

         Alegria quando chovia. Medo de lobisomem, mula sem cabeça e dos cangaceiros de Lampião. Emoção e espiritualidade, quando rezava na missa ou acompanhava as procissões. Prazer, no aconchego da alcova. Tudo isso eu compartilhei com minha mãe durante nove meses.

         Como já disse, meu pai era delegado da mui famosa cidade de Novo Amparo (hoje, Heliópolis). A delegacia era na sala da frente da casa onde a gente morava. E foi lá que, um dia, eu ri tanto que até dei uns chutes na barriga da véia. É que chegaram à delegacia, intimadas a prestar esclarecimentos, duas prostitutas que tinham se envolvido numa confusão no mercado. Uma delas, tentando se explicar disse: “Sabe, seu Totonho, nós semo puta...” Meu pai corrigiu: “Nós  “semo” não, nós somos”. E a mulher coitada, toda cheia de dedos, se desculpou: “O sinhô me adiscurpe. É qui eu num sabia que o sinhô também era...”

         Uma outra vez, deram um alarme (falso) de que Lampião e seu bando estavam entrando na cidade. Foi um alvoroço. Mas, a coisa pegou mesmo foi quando minha mãe viu meu pai sair, correndo, da casa de uma conhecida dama do lugar, trajando apenas cueca samba-canção. Eu não sei como não morri de tanto rir, com a confusão que deu lá em casa. E assim foi que eu fui crescendo, experimentando a cada dia uma emoção nova.

         Mas, foi quando estava para nascer que experimentei um sentimento diferente: A incerteza. Nossa família estava se mudando para Feira de Santana, uma terra estranha, uma gente diferente, usos e costumes diferentes. E, o mais curioso, é que minha mãe sonhava com aquela terra que ela não conhecia, mas sabia que seria, um dia, o seu destino. Iniciava-se o ano de 1954, nossa família já estava instalada em Feira de Santana, onde minha mãe era proprietária de uma movimentada pensão na praça da Matriz, quando no dia 07 de janeiro eu botei a cara no mundo.

         Por dois meses eu passei desapercebido de todos que entravam e saiam da pensão, até porque eu não chorava, não reclamava de nada, era muito tratado, bem alimentado, e minha velha sempre tinha um tempinho pra mim, apesar de toda a ocupação que a pensão lhe dava. Um dia, uma garota de 13 anos, Ada, filha dos vizinhos Anacleto e Aurelina Mascarenhas, me viu nos braços da minha irmã. Apaixonou-se pela criança de olhos verdes e cabelos louros e encaracolados. Foi amor a primeira vista. Ela me levou pra casa, de onde eu nunca mais sai.

         Como nada no mundo é perfeito, eu nasci com uma estenose, que é um estreitamento da válvula mitral. Em termos leigos, é o chamado “sopro”, no coração. O médico disse que se eu passasse dos cinco anos, sobreviveria. Só aos 25 anos, já pai de dois filhos, tive coragem de fazer a cirurgia pra corrigir o defeito de fabricação. Foi quando os médicos me botaram pra dormir mais cedo, senão ninguém trabalhava. Mas isso já é uma outra estória. 

NE: Publicada no livro Sempre Livre (2010)

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