*Tédio e mesmices*
Dias atrás, estive com Luzia, entidade protetora da visão, representada por um amigo, oculista de mão cheia. Homem meticuloso, paciente e prestimoso. Assim não fosse, não se chamaria João Félix. Um ‘misto-quente’ entre João, o primo do Homem e Félix - o finado bruxo charuteiro. Sendo ele especialista em olhos, recomendei-lhe debruçar-se em Machado de Assis, inigualável (d)escritor de olhares. Não cobrei consulta. Em troca deu-me luz aos olhos: dois graus a menos em cada olho astigmático. Como nos é confortador ter amigos em estado de santidade ...
Ai de mim, caríssimos leitores e leitoras - alguns habituais em fartar-me de vaidades com seus generosos encômios - não fosse o prazer de deitar letras em páginas de vadiação, para desviar a mente das mesmices da velhice.
O tédio, segundo o fundador da nossa Academia, revela-se em Memórias póstumas de Brás Cubas: “as aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é, a exceção”.
Tanto, atesto. Navegador em incontáveis exceções até os sessenta anos, em algumas naufraguei, não lhes rendo preito de saudade. Todavia, tais naufrágios teimam em minhas reminiscências, como agorinha, ao impertinente sono pós-almoço: lembranças seletivas, sonhos fora da curva, indesejados momentos eternizados na memória.
Tento ludibriar o sono-sonho. Quero desvencilhar minhas mãos das algemas do passado e que aprisionam o desejo de transformar-me em letras e palavras.
Reluto em combater o tédio e as mesmices da existência, ao tentar discorrer sobre os torrenciais e tórridos instantes das exceções. Cogito, no dia-a-dia das implacáveis rotinas encontrar uma fresta, uma brecha pela qual possa penetrar um raio de luz para operar o milagre de converter-me em texto.
Curioso, espio. Vejo, pela gretinha descoberta sob o travesseiro testemunha de meus sonhos, as velas que velaram a vida de amigos. Suas luminescências – falo das velas e dos amigos – sempre fulgem; resplandecem e afugentam os marasmos impostos pela vida longa. No dizer machadiano são “reminiscências inquietas”: apesar dos anos não envelhecem e pedem a todo custo serem dadas ao mundo “pela pena ou pela língua”.
Assim, volta e meia, memorialmente, ressuscito as torrenciais exceções, as tremulantes velas, os amigos distantes de meus braços para sempre, as reminiscências inquietas e componho instantes contemplativos, quase místicos. Momentos alentadores, pondo-me a vadiar em páginas endereçadas a gente pouca de minha admiração muita.
Gente que é gente.
Como todos quantos se comprazem com minhas
divagações.
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