sábado, 23 de julho de 2022

 


*Menu raro* 

Aviso à porta da cozinha da casa, dias antes. 

PREGO à moda Mário Portugal 

Próximo domingo, ao almoço, teremos Prego como prato principal.

Além da Salada ítalo-rubro-verde e do descolado Arrozim alvim, alvim,

o cardápio contemplará

Macarrão alho e óleo para quem o prefira ao arroz. 

     Assim, com a devida vênia de Dona Linda, lancei-me à empreitada. Já me aventurara em tal iguaria duas ou três vezes. Por demandar tempo para prepará-la, não é comida frequente à mesa. Mas, graças à pandemia, sem graça alguma, tempo há de sobra. 

A receita do prato é de amigo de priscas eras, Mário Portugal, cujas cinzas, espalhadas ao vento, andam por aí. O finado - excelente gourmet, homem inteligente, charuteiro como eu, viajado e apreciador das boas coisas da vida – foi amigo por meio século, ao qual aqui e agora, rendo preito de gratidão pelo quanto sua amizade enriqueceu meu viver.

           Prossigo.

Antes de tudo, falemos do antes.

Das diligências à conclusão do feito. 

A odisseia iniciou na quarta-feira. Foi quando acorri à casa de carnes de meu amigo Beto. Açougueiro a vida toda, só manda ao abate bois gordos de sua boiada. Sabe serem mais macias as carnes de animais gordos, bem como a gordura, apesar de não ingerível, ser atributo indispensável a uma carne saborosa. Sempre acatei suas opiniões, posto Beto ser mais entendido em carnes que eu - em casamentos, entenda-se. Missão cumprida: assegurada a reserva do “prego” de boi gordo, para a manhã da sexta-feira. 

Agora, faz-se necessário esclarecer o corte bovino “prego”, para leitores de outras plagas.  “Prego”, peça ao redor de quatro quilos, corresponde à parte do peito, não desossada; sua aparência evoca, de forma apressada, o contrafilé ainda com a estrutura óssea. 

Dois dias após, sexta-feira, “prego” na balança, quatro quilos e alguns gramas. Solicito serrar a ossada em três partes para poder acomodá-la na panela; feliz e satisfeito, pago a conta, e sigo - mascarado, sufocado, apressado - ao supermercado comprar ingredientes da receita, sem ter em conta se, dos mesmos, haveria algo na despensa da casa. O vinho tinto seco não necessita ser Châteauneuf-du-Pape ou, para não ir tão longe, também não se há de comprar Casillero del Diablo. Depois, o trivial, alho, cebolas, cebolinha, salsa, polpa de tomates, pimenta preta moída, bacon. 

Precavido, reúno as compras no balcão da cozinha e saio em busca da panela apropriada ao volumoso preparo. Procuro aqui, fuço acolá, nada de encontrar a panela da qual nos valemos para exorbitantes feijoadas. Contrafeito, recorro à cara-metade, senhora dos esquecidos lugares onde costuma guardar os trecos e tarecos da casa, como um todo. Ela percorre os caminhos por mim percorridos e ... nada. 

 De repente, exclama, em tom de dúvida: “Não estará na cozinha do sítio?!” 

Assim, vou buscar, a três quilômetros de distância, o indispensável utensílio. De volta, meia hora após, confiro a receita e verifico tudo estar justo e perfeito. Não, não, faltava a colher de pau. A mulher entrega-me uma dessas moderninhas espátulas de silicone, cabo curto, e, em tom de brincadeira, pergunta se eu preferia a verde ou a vermelha. Sorrindo, recuso a oferta.

 “Quero uma colher de pau!”, insisto.

Ela tem prevenção contra tábuas de cortar carnes, gamelas ou colheres de madeira. “São anti-higiênicas!”, condena.

“Quando mal lavadas”, contesto e completo, “Lá no Sul há trezentos anos tudo é de madeira e ao que eu saiba ninguém, até hoje, morreu por isso!” 

Ela, “Lá vem você com a conversa de sempre, lá no Sul isso, lá no Sul aquilo!” A seguir me alcança a colher de pau, soterrada estava em uma das gavetas da cozinha. 

Ao final da luz do dia, preparei a vinha d’alho, pondo o “prego” a marinar por vinte e quatro horas. Até aqui, tudo sob controle. 

Sábado, logo cedo cuidei do preparo do tempero restante; guardei-o no refrigerador. À noitinha, cumpridas as horas da marinada, acrescentei o tempero preparado pela manhã; pus a mistura a descansar por uma hora. Transcorrido o prazo, relógio marcava 20 horas, completei a panela com água até cobrir o conjunto, pondo-a para cozinhar três horas. Noite adiantada, hora do sono, desligo o fogo, o “prego” cozido pernoitará na paz do caldo quente. O aroma da fervura inebriara a cozinha e seus silentes rastos casa afora. 

Dia seguinte, domingo, transponho a peça da panela para a assadeira, embuto tirinhas de bacon e a pincelo com mostarda. Deixo-a descansar, curtindo as adições procedidas. Em paralelo, ao caldo resultante do cozimento acrescento toques de mostarda e mais duas outras horas de fogo, para reduzi-lo por fervura e evaporação. 

 Para não saturar o ambiente da cozinha optei, para tal procedimento, por fogão instalado na área externa. Concluída a redução de volume do caldo, cujo resultado ressaltou os aromas e sabores dos ingredientes, cuidei de mandar o “prego” ao forno por meia-hora. A gordura resultante na assadeira é misturada ao caldo, acrescentando-se rodelas de cebola, completando, assim, o molho para ser servido em separado. 

Daí para frente - julgo tenham sido três, as gélidas “louras” ficado para trás - beiravam duas horas da tarde, Dona Linda após preparar a mesa, a todos conclamou ao melhor estilo doméstico: o arrastado, compassado e sonoro “Gente! O almoço está na mesa!” 

Espetáculo culinário. O majestoso “prego” arrodeado pelo tentador macarrão alho e óleo, pela terrina com o espesso e aromático molho, pela salada ítalo-rubro-verde e pelo arrozim alvim, alvim, soltim, soltim de dar gosto. 

Enquanto nos deliciávamos, matutava com meus botões não ser bastante gozar o sabor das iguarias à mesa. Sentimos prazer por lábios em sussurros, mãos em carícias, aromas embriagantes, letras em narrativas. 

É a entusiástica e sinfônica orquestração de regozijo, executada pelos sentidos. Quem lê, ao deparar-se com a descrição das sensações alheias, ressuscita em si, as suas. 

Refiro-me à magia das palavras, as quais através do olhar, sem o sentirmos, migram do papel ou da telinha virtual para os corações dos leitores.

 

Recôncavo Baiano, outono de 2020, 9 de junho, data dedicada à Língua Portuguesa.

Hugo A. de Bittencourt Carvalho, economista, cronista, ex-diretor das fábricas de charutos Menendez & Amerino, Suerdieck e Pimentel, vive em São Gonçalo dos Campos – BA.

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