terça-feira, 20 de novembro de 2012

Missão Ebola: “Me reinventei a marretadas”

Débora Noal, psicóloga dos Médicos Sem Fronteiras, conta em entrevita publicada em Época, como é isolar o vírus mais terrível da nossa época – sem isolar a vida. Quem escreve a matéria que trnascrevemos aqui é Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista.
 
Na manhã de 30 de julho, logo cedo, a psicóloga Débora Noal abriu sua caixa de e-mails depois de passar o café na cozinha do seu apartamento, em Brasília. Ao enxergar na lista o nome da organização internacional humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), ela teve a sensação de loteria que costuma tomá-la nesses momentos em que ainda não sabe qual será o seu destino, mas tem certeza de que sua vida será alterada radicalmente no segundo seguinte. Desta vez, a proposta tinha um significado ainda mais impactante: “I contact you regarding your availability for ebola emergency in Uganda. Departure is asap. More details will be sent if you are available”. (“Entro em contato para checar sua disponibilidade para uma emergência de ebola em Uganda. Partida imediata. Detalhes serão enviados se sua resposta for afirmativa”. A maioria das pessoas gastaria menos de um segundo para dizer não. Débora sequer hesitou: “Sim”. 

Passou mais de dez dias de sobreaviso, com a vida em suspenso, antes de ser informada de que a situação estava sob controle e sua presença não seria mais necessária. Recuperou, então, o mais próximo de uma rotina que um membro de MSF pode ter quando não está em campo – no caso dela, um mestrado no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Dias mais tarde, ela recebeu um novo e-mail: agora, havia uma epidemia de ebola na República Democrática do Congo (RDC). Três dias depois, em 29 de agosto, embarcou no primeiro da série de voos que a deixaria na cidade de Isiro, perto da fronteira do Congo com Uganda, na África. Ao desembarcar, a equipe abraçou-se pela última vez. Dali em diante, eles não poderiam mais tocar – nem ser tocados.  

Débora já tinha atuado em terremotos, conflitos armados, campos de refugiados tanto da guerra quanto da fome, mas era sua estreia numa epidemia de ebola. Para uma emergência de ebola, considerada a missão mais difícil de uma organização especializada em situações desesperadoras, só são chamados os mais experientes. De volta ao Brasil, Débora escreveria: “Voltei pra casa depois de 30 dias na epidemia de Ebola do Congo. E estou com aquele cansaço no corpo de quem passou a noite em claro num velório de 30 noites. Foi uma das missões mais difíceis que fiz. Triste. Muitas mortes. A vida se esvaindo sem dignidade. As febres hemorrágicas jogam na nossa cara a mesma matéria que nos faz viver. Era tanta vida saindo de cena e partindo, que, enquanto eu acordava, às cinco horas da manhã, segui escrevendo na minha agenda de atividades diárias a palavra funeral. E eu, um ser humano destes qualquer, uma mundele, uma mzumgu (branco estrangeiro), que nunca havia dividido os planos de vida com aquelas pessoas, agora era responsável por dividir com os parentes os planos para o último ato. O rito de passagem, funeral, velório, enterro era compartilhado sempre por mim. Queria que nós, humanos, virássemos fumaça, vento, ar. Indigno. Entrar no último ato dentro de um saco plástico lacrado, sem direito a ter sua face exposta. Sem direito ao último toque, à última fala, à última escuta dos votos de cuidado. Como assim? Sentimento de dor, sentimento de querer cuidar do outro. Como cuidar do outro sem tocar? Como abraçar alguém sem usar os braços? Como você acaricia a cabeça de uma menina de dois anos sem usar as mãos? Como dizer pra alguém que você está do lado dele quando precisa se afastar dois metros? Iniciar uma longa viagem sem companhia. Estar só. Logo ali, no último ato". 

Débora ainda estava de luto por um funeral ininterrupto. O ebola, vírus identificado pela primeira vez em 1976 no antigo Zaire (atual República Democrática do Congo), é uma febre hemorrágica frequentemente letal, para a qual ainda não existe nem tratamento curativo, nem vacina. É transmitido apenas pelo contato com os fluidos corporais de pessoas infectadas que já estão manifestando os sintomas da doença (dores de cabeça, inflamações na garganta, febre, vômitos e diarreia; hemorragias internas e externas nos casos mais graves). O ebola não é transmitido pelo ar, como o medo faz muitos acreditarem. Nesta última epidemia no Congo, a organização internou 80 pessoas no Centro de Tratamento de Ebola, das quais 36 foram confirmadas como positivas – 12 morreram. Como medida de segurança, os agentes de MSF são orientados a não terem contato direto nem entre si, nem com a população. Até hoje, nenhum membro da organização foi contaminado por ebola.   

Mesmo assim, ao voltar para o Brasil, Débora preferiu passar 21 dias sem toque. Ela não havia sido infectada e não existia nenhum motivo racional para qualquer cuidado. Tinha enfrentado uma epidemia de ebola – e sobrevivido. Mas precisou desse tempo para costurar o vivido. A entrevista a seguir foi realizada em 26 de outubro, alguns dias depois do fim dessa espécie de quarentena que ela impôs a si mesma, no apartamento povoado por lembranças de viagens pouco convencionais que ela divide com o marido, Antonio, um sanitarista. Débora estava visivelmente mais magra, mas não tinha ideia de quantos quilos perdeu. Foram quase seis horas de conversa, interrompida às vezes por Schimia, uma cadelinha da raça Schnauzer (aqueles cachorros com barba e bigode). Nestas quase seis horas, Débora chorou durante a maior parte do tempo. Não um choro soluçado, mas um choro de córrego – lento, suave e intermitente. 

Não é a primeira vez que Débora Noal, 31 anos, é entrevistada nesta coluna. Muitos leitores já a conhecem de uma entrevista anterior: "Minhas raízes são aéreas". Vários deles alteraram suas vidas depois de lerem seu depoimento, por caminhos diversos. Talvez seja mesmo impossível entrar em contato com as experiências de Débora sem ser transformado de alguma maneira.  

Nesta entrevista, ela conta como é cuidar sem poder tocar, como é integrar uma equipe de emergência numa das regiões mais miseráveis e violentas do planeta. Conta, principalmente, histórias sobre como arrancar vida no meio da morte, sobre a resistência da delicadeza mesmo nas horas brutas, sobre grandes gestos feitos por quem quase nada tinha além da sua humanidade. Conta ainda como foi assinalada – possivelmente para sempre – pelo que viveu.    
Ao longo da sua trajetória, vamos conhecer o primeiro bebê a nascer vivo dentro de um Centro de Tratamento de Ebola. Descobriremos qual foi a solução, quase mágica para os congoleses, para fazer com que a comunidade aterrorizada se aproximasse das pessoas doentes – isolando o vírus sem isolar as pessoas. Saberemos por que um homem desesperado tentou fugir do Centro ao receber uma notícia de casa. E como um pai conseguiu fazer com que a filha morresse em paz, mesmo sangrando por todos os orifícios. Acompanharemos, também, como foi para Débora voltar de uma missão como esta e encontrar o medo no olhar das pessoas, mesmo as mais próximas. 

A edição da entrevista respeita a sequência narrativa de Débora, tanto em sua linearidade quanto nos momentos de ruptura. Na anterior, eu mencionei que havia publicado um terço de nossa conversa. Passei meses recebendo pedidos de pessoas que queriam os dois terços restantes. Desta vez, ousei um pouco mais: depois de duas semanas de trabalho meticuloso, consegui reduzir nossa conversa à metade essencial. Esta é a travessia de uma mulher, ao mesmo tempo para fora e para dentro de si mesma. 

Leia entrevista completa em Época

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