
Na manhã de 30 de julho, logo cedo, a psicóloga Débora Noal abriu sua
caixa de e-mails depois de passar o café na cozinha do seu apartamento,
em Brasília. Ao enxergar na lista o nome da organização internacional
humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), ela teve a sensação de loteria
que costuma tomá-la nesses momentos em que ainda não sabe qual será o
seu destino, mas tem certeza de que sua vida será alterada radicalmente
no segundo seguinte. Desta vez, a proposta tinha um significado ainda
mais impactante: “I contact you regarding your availability for
ebola emergency in Uganda. Departure is asap. More details will be sent
if you are available”. (“Entro em contato para checar sua
disponibilidade para uma emergência de ebola em Uganda. Partida
imediata. Detalhes serão enviados se sua resposta for afirmativa”. A
maioria das pessoas gastaria menos de um segundo para dizer não. Débora
sequer hesitou: “Sim”.
Passou mais de dez dias de sobreaviso, com a vida em suspenso, antes de
ser informada de que a situação estava sob controle e sua presença não
seria mais necessária. Recuperou, então, o mais próximo de uma rotina
que um membro de MSF pode ter quando não está em campo – no caso dela,
um mestrado no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília
(UnB). Dias mais tarde, ela recebeu um novo e-mail: agora, havia uma
epidemia de ebola na República Democrática do Congo (RDC). Três dias
depois, em 29 de agosto, embarcou no primeiro da série de voos que a
deixaria na cidade de Isiro, perto da fronteira do Congo com Uganda, na
África. Ao desembarcar, a equipe abraçou-se pela última vez. Dali em
diante, eles não poderiam mais tocar – nem ser tocados.
Débora já tinha atuado em terremotos, conflitos armados, campos de
refugiados tanto da guerra quanto da fome, mas era sua estreia numa
epidemia de ebola. Para uma emergência de ebola, considerada a missão
mais difícil de uma organização especializada em situações
desesperadoras, só são chamados os mais experientes. De volta ao Brasil,
Débora escreveria: “Voltei pra casa depois de 30 dias na epidemia de
Ebola do Congo. E estou com aquele cansaço no corpo de quem passou a
noite em claro num velório de 30 noites. Foi uma das missões mais
difíceis que fiz. Triste. Muitas mortes. A vida se esvaindo sem
dignidade. As febres hemorrágicas jogam na nossa cara a mesma matéria
que nos faz viver. Era tanta vida saindo de cena e partindo, que,
enquanto eu acordava, às cinco horas da manhã, segui escrevendo na minha
agenda de atividades diárias a palavra funeral. E eu, um ser humano
destes qualquer, uma mundele, uma mzumgu (branco estrangeiro), que nunca
havia dividido os planos de vida com aquelas pessoas, agora era
responsável por dividir com os parentes os planos para o último ato. O
rito de passagem, funeral, velório, enterro era compartilhado sempre por
mim. Queria que nós, humanos, virássemos fumaça, vento, ar. Indigno.
Entrar no último ato dentro de um saco plástico lacrado, sem direito a
ter sua face exposta. Sem direito ao último toque, à última fala, à
última escuta dos votos de cuidado. Como assim? Sentimento de dor,
sentimento de querer cuidar do outro. Como cuidar do outro sem tocar?
Como abraçar alguém sem usar os braços? Como você acaricia a cabeça de
uma menina de dois anos sem usar as mãos? Como dizer pra alguém que você
está do lado dele quando precisa se afastar dois metros? Iniciar uma
longa viagem sem companhia. Estar só. Logo ali, no último ato".
Débora ainda estava de luto por um funeral ininterrupto. O ebola, vírus
identificado pela primeira vez em 1976 no antigo Zaire (atual República
Democrática do Congo), é uma febre hemorrágica frequentemente letal,
para a qual ainda não existe nem tratamento curativo, nem vacina. É
transmitido apenas pelo contato com os fluidos corporais de pessoas
infectadas que já estão manifestando os sintomas da doença (dores de
cabeça, inflamações na garganta, febre, vômitos e diarreia; hemorragias
internas e externas nos casos mais graves). O ebola não é transmitido
pelo ar, como o medo faz muitos acreditarem. Nesta última epidemia no
Congo, a organização internou 80 pessoas no Centro de Tratamento de
Ebola, das quais 36 foram confirmadas como positivas – 12 morreram. Como
medida de segurança, os agentes de MSF são orientados a não terem
contato direto nem entre si, nem com a população. Até hoje, nenhum
membro da organização foi contaminado por ebola.
Mesmo assim, ao voltar para o Brasil, Débora preferiu passar 21 dias
sem toque. Ela não havia sido infectada e não existia nenhum motivo
racional para qualquer cuidado. Tinha enfrentado uma epidemia de ebola –
e sobrevivido. Mas precisou desse tempo para costurar o vivido. A
entrevista a seguir foi realizada em 26 de outubro, alguns dias depois
do fim dessa espécie de quarentena que ela impôs a si mesma, no
apartamento povoado por lembranças de viagens pouco convencionais que
ela divide com o marido, Antonio, um sanitarista. Débora estava
visivelmente mais magra, mas não tinha ideia de quantos quilos perdeu.
Foram quase seis horas de conversa, interrompida às vezes por Schimia,
uma cadelinha da raça Schnauzer (aqueles cachorros com barba e bigode).
Nestas quase seis horas, Débora chorou durante a maior parte do tempo.
Não um choro soluçado, mas um choro de córrego – lento, suave e
intermitente.
Não é a primeira vez que Débora Noal, 31 anos, é entrevistada nesta
coluna. Muitos leitores já a conhecem de uma entrevista anterior: "Minhas raízes são aéreas".
Vários deles alteraram suas vidas depois de lerem seu depoimento, por
caminhos diversos. Talvez seja mesmo impossível entrar em contato com as
experiências de Débora sem ser transformado de alguma maneira.
Nesta entrevista, ela conta como é cuidar sem poder tocar, como é integrar uma equipe de emergência numa das regiões mais miseráveis e violentas do planeta. Conta, principalmente, histórias sobre como arrancar vida no meio da morte, sobre a resistência da delicadeza mesmo nas horas brutas, sobre grandes gestos feitos por quem quase nada tinha além da sua humanidade. Conta ainda como foi assinalada – possivelmente para sempre – pelo que viveu.
Ao longo da sua trajetória, vamos conhecer o primeiro bebê a nascer
vivo dentro de um Centro de Tratamento de Ebola. Descobriremos qual foi a
solução, quase mágica para os congoleses, para fazer com que a
comunidade aterrorizada se aproximasse das pessoas doentes – isolando o
vírus sem isolar as pessoas. Saberemos por que um homem desesperado
tentou fugir do Centro ao receber uma notícia de casa. E como um pai
conseguiu fazer com que a filha morresse em paz, mesmo sangrando por
todos os orifícios. Acompanharemos, também, como foi para Débora voltar
de uma missão como esta e encontrar o medo no olhar das pessoas, mesmo
as mais próximas.
A edição da entrevista respeita a sequência narrativa de Débora, tanto
em sua linearidade quanto nos momentos de ruptura. Na anterior, eu
mencionei que havia publicado um terço de nossa conversa. Passei meses
recebendo pedidos de pessoas que queriam os dois terços restantes. Desta
vez, ousei um pouco mais: depois de duas semanas de trabalho
meticuloso, consegui reduzir nossa conversa à metade essencial. Esta é a
travessia de uma mulher, ao mesmo tempo para fora e para dentro de si
mesma.
Leia entrevista completa em Época
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