(adolescente
soropositivo, cego, mudo e paralítico,
é despejado
de abrigo)
Uma denúncia anônima chegou aos jornais, revelando que um garoto,
deficiente mental, soropositivo, cego, mudo e paralítico, fora despejado do abrigo
onde passara toda sua vida, por determinação da Justiça de Santa Catarina (PR).
Dois oficiais de Justiça levaram o adolescente ao gabinete do pedagogo
Rui da Luz, secretário de Assistência Social de São José (SAS), na Grande
Florianópolis. Eles cumpriam ordens da juíza Ana Cristina Borba, da Vara da
Infância e Juventude da cidade. Os oficiais largaram o garoto no tapete do
escritório, exigiram um recibo e foram embora.
O secretário Luz transferiu PC para uma clínica privada em Camboriú,
assumindo o custo de R$ 4.000 mensais, jogando na conta da Prefeitura de São
José. “O caso de P.C. (nome omitido conforme o Estatuto da Criança e
Adolescente) era conhecido, mas nós (da SAS) nunca fomos informados de qualquer
problema com ele durante 17 anos, até que apareceram e jogaram a pessoa aqui,
sem respeito por ela”, queixa-se Luz.
O secretário disse que a surpresa foi maior porque “ninguém procurou
nenhuma instituição antes, vieram direto aqui no meu gabinete, imagine se a
moda pega”. Luz afirmou que PC ficou até as 23 horas daquele dia no escritório,
quando então obteve vaga provisória no sistema de assistência municipal, numa
clínica de idosos.
O caso do despejo de PC é só mais um momento marcante em sua vida.
Abandonado pela mãe soropositiva no Hospital Regional de São José aos três
meses, em 1995, ele testou soropositivo e logo pegou meningite, com graves
sequelas. Paralítico, mudo e cego, perdeu as chances de adoção. Foi aí que ele
conheceu dona Heleninha Pires, fundadora do Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids).
Viúva e sem filhos, há 30 anos ela corre os hospitais catarinenses apoiando
aidéticos e suas crianças: “Peguei o PC porque ninguém o queria”, conta dona
Heleninha.
No “peguei”
está a raiz do processo judicial
Ela pegou PC em São José e o levou para o Lar Recanto do Carinho, uma
ONG criada por ela em Florianópolis. Mas a tecnicalidade interfere na hora
de ele ser recebido por uma instituição. Como não tem família e é um cidadão de
São José, é dessa cidade a obrigação de cuidar dele. Dona Heleninha não
deu bola para isso, lá em 1995. No Recanto do Carinho, PC cresceu com sua cama,
seu quarto, seus pertences: “A vida dele foi toda aqui”, diz indignada, ao
saber do despejo dele e da remoção forçada para o gabinete do secretário.
PC só foi caminhar, com apoio, aos quatro anos. Aos 12, dona Heleninha
conseguiu uma vaga na Apae de Florianópolis, da qual o tenista Guga Kuerten é
um dos grandes apoiadores. Um ônibus escolar levava o adolescente. Nos
últimos quatro anos, ele também era cuidado por uma funcionária do Recanto do
Carinho chamada Silene (ela não quis ter o nome divulgado, temendo
represálias). Silene se afeiçoou ao menino, dividindo os cuidados com
Heleninha. Quando fez 16 anos, em dezembro do ano passado, PC atingiu idade
para ser removido do Recanto, que só cuida de jovens até 16.
O despejo
No ano passado, ainda, uma nova direção assumiu o Recanto. Por razões
administrativas desconhecidas (a diretora Regina Lins recusou-se a falar com a
reportagem do UOL), o Recanto encaminhou à juíza Brigitte May,
da vara de Infância de Florianópolis, um pedido de recolocação de PC no sistema
de assistência social - sem comunicar dona Heleninha. A juíza May oficiou à
juíza Ana Borba sobre a origem sãojosesiana de PC. Nenhuma das juízas quis dar
entrevistas. As duas, em segredo de Justiça, decidiram o caso. Por ter origem
no hospital de São José, ele deveria deixar de tratado em Florianópolis.
Foi assim que o garoto acabou entregue no gabinete do secretário Luz. E
abriu-se a questão: onde colocar um deficiente com tantos problemas de saúde? “Se
ele passou 17 anos em Florianópolis, que é a capital, imagina onde ele ia
conseguir coisa melhor”?, disse dona Heleninha. “Deveriam tê-lo deixado em paz”.
A SAS de São José só conseguiu aquela vaga numa clínica de idosos - onde
o pessoal não estava preparado para tratá-lo. Na quarta-feira (28), Silene foi
visitá-lo e ficou comovida com a situação do menino. Saiu dali e queixou-se ao
tabloide “Notícias do Dia” e à dona Heleninha. Na manhã de quinta (29), com as
primeiras notícias, o secretário Luz transferiu PC para uma clínica privada em
Camboriú, assumindo o custo de R$ 4.000 mensais, jogando na conta da Prefeitura
de São José.
Na tarde de quinta, dona Heleninha reagiu com um pedido à Justiça de
guarda de PC: “Eu quero ele de volta ao seu quarto, no Recanto. Uma pessoa como
ele só reconhece quem lhe dá atenção e carinho pela voz, pelo cheiro e pelo
tato. Uma mudança brusca como esta está além da compreensão dele, foi uma
tremenda insensibilidade”.
Não adiantou Silene pedir sigilo do nome. As represálias contra ela
vieram. Às 17 horas de quinta ela estava demitida. A direção do Recanto
suspeitou (e acertou) que ela tinha feito a denúncia à imprensa e reagiu com a
demissão.
E PC? Está na clínica de Camboriú, alheio ao seu próprio destino.
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