Coronavírus: uso de dados de geolocalização contra a pandemia põe em risco sua privacidade?
Alguns países asiáticos têm
impressionado — e assustado — o Ocidente com suas ferramentas
tecnológicas no enfrentamento ao coronavírus.
O governo chinês,
por exemplo, adotou um aplicativo que atribui um código de cores (verde,
amarelo ou vermelho) aos usuários, podendo restringir sua liberdade de
circulação a depender do risco que representam para o contágio da
doença.
A Coreia do Sul, por sua vez, aplicou uma estratégia que
associa a testagem em massa da população com uso de dados pessoais —
como registros do GPS do celular ou do uso do cartão de crédito — para
rastrear onde pessoas contaminadas estiveram e, assim, emitir alertas
para outros potenciais contaminados se testarem e se isolarem.
Ao
mesmo tempo que essas práticas têm se mostrado muito eficientes para
conter a expansão do coronavírus, também geram questionamentos sobre os
riscos à privacidade dos cidadãos.
Na Europa, cientistas de diferentes universidades e empresas
estão buscando desenvolver uma tecnologia menos invasiva de
rastreamento de contato entre pessoas usando o bluetooth dos celulares —
um método que não implicaria na identificação da identidade dos
indivíduos e dos lugares onde eles estiveram.
Além
das iniciativas europeias, as gigantes Google e Apple também anunciaram
uma parceria inédita para desenvolver uma tecnologia com esse mesmo
princípio.
Polêmica no Brasil
No
Brasil, um uso de dados de geolocalização considerado por especialistas
ainda menos invasivo já tem provocado polêmica — é a análise de
informações de geolocalização agregadas e anônimas de diversos cidadãos
para monitorar qual o percentual de pessoas em determinada região está
seguindo a orientação de permanecer em casa o máximo possível.
Sob
a justificativa de que os riscos à privacidade precisam ser mais bem
avaliados, o presidente Jair Bolsonaro determinou que o Ministério da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) interrompesse
tratativa com operadoras de telefonia para uso dessas informações pelo
governo federal.
Apesar da oposição de Bolsonaro, o ministro
Marcos Pontes defendeu a parceria com o setor ao responder no Instagram a
uma seguidora temerosa: "Em momento algum os seus dados pessoais estão
sendo analisados. O sistema aponta aglomeração por mapa de calor... nada
mais que isso! Essas informações são importantes para dar celeridade
nas pesquisas científicas que poderão te proteger desse vírus. Juntos
somos mais fortes! Acredite no Brasil", argumentou Pontes.
Governo chinês adotou um aplicativo que dá atribui um código de cores aos usuários
Estados e municípios já usam o monitoramento
Enquanto
o governo federal reluta, alguns Estados e municípios já têm usado essa
ferramenta. O governo de São Paulo e a prefeitura do Rio de Janeiro,
por exemplo, firmaram parcerias com empresas de telefonia.
A
maioria, no entanto, tem usando os dados da In Loco, companhia
brasileira de segurança digital que está presente em cerca de 60 milhões
de celulares por meio de aplicativos que usam sua tecnologia.
É o
caso dos governos de Alagoas, Amapá, Amazonas, Ceará, Maranhão, Goiás,
Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além das prefeituras do Recife, de
Teresina e de Aracaju.
Além disso, a empresa tem disponibilizado em seu site
diariamente o índice de isolamento médio nacional e em cada Estados do
país. Para realizar esse cálculo, a In Loco dividiu o território
brasileiro em hexágonos com raio de 450 metros, área capaz de abranger
algumas ruas de um bairro, por exemplo. O índice mede o percentual de
moradores que saíram dessa área delimitada no dia.
O objetivo,
diz a empresa, é que os governos, sabendo as regiões da cidade ou do
Estado que estão com menor ou maior adesão ao isolamento social, possam
direcionar melhor suas políticas de saúde, conscientização e segurança.
A
ferramenta permite, por exemplo, a contagem de visitas anonimizadas
(sem identificação pessoal) a hospitais, clínicas e postos de saúde,
para "possibilitar que órgãos responsáveis aloquem de forma inteligente
pacientes e profissionais de saúde, evitando superlotação".
Os
números da In Loco mostram que o a adesão ao isolamento social atingiu
um pico de 70% na média nacional em 22 de março (patamar considerado
ideal por epidemiologistas para a contenção da doença), mas desde então
recuou, tendo oscilado na última semana (de 13 a 18 de abril) entre 46% e
51%.
Apesar de abaixo do ideal, o índice mostra que as pessoas
têm saído de casa bem menos que o normal. Segundo os dados da primeira
metade de fevereiro da In Loco, portanto antes da chegada do coronavírus
ao país, o percentual de pessoas que não deixavam sua região de moradia
num dia útil normal no Brasil costumava ficar entre 16% e 21%.
Especialista defende solução menos invasiva como o 'mapa de calor'
Riscos de 'normalização' de novas estruturas de vigilância
O
especialista em segurança de sistemas Diego Aranha, professor do
departamento de Engenharia da Aarhus University, na Dinamarca, diz que é
importante estar atento às novas formas de controle que vão surgir
nesse momento de enfrentamento da pandemia.
"A estrutura de
vigilância, depois de montada, é muito difícil de ser revertida. Por
mais que seja justificada a necessidade de se instalar agora, para esse
caso específico, é muito tentador para governos rapidamente encontrarem
outras formas de usar aquela mesma infraestrutura de vigilância, que
fica normalizada e pode se tornar permanente", alerta. "Foi o que
aconteceu com o reconhecimento facial na China", exemplifica.
Apesar disso, ele não vê um risco alto no uso de dados anônimos e agregados para medir o isolamento social durante a pandemia.
"Eu
fiquei bem surpreso com a reação aos mapas de calor, que me parece uma
solução pouco invasiva se corretamente implementada, ter gerado algum
tipo de controvérsia e politização. É uma solução menos invasiva,
inclusive, que muitos outros acessos de dados que as pessoas já fornecem
ao governo e a empresas", ressalta.
"Dada alguma garantia de que
essa infraestrutura seja eliminada ao final da crise, eu vejo como um
bom compromisso entre privacidade e controle", disse ainda.
O
Data Privacy Brasil, centro de estudos sobre privacidade, decidiu não
adotar uma postura contra ou a favor do uso de dados para políticas de
contenção à pandemia. A organização produziu um documento com
orientações de salvaguardas que os governos devem adotar caso optem por
essas ferramentas.
"É preciso ter um acordo formal, um contrato, e
todas as informações sobre finalidade devem estar bem delimitadas, por
quanto tempo vai ser utilizado e quais as técnicas de segurança (para
proteger a privacidade) vão ser implementadas", detalha Mariana Rielli,
pesquisadora do Data Privacy Brasil.
O que diz a lei brasileira?
A
decisão de Bolsonaro de suspender a conversa entre governo e operadoras
foi tomada a despeito de a Advocacia Geral da União ter dado sinal
verde para o acordo de cooperação.
Segundo parecer do órgão de 2 de abril, o
compartilhamento de dados pelas empresas de telefonia "na forma anônima e
agregada" para "fins de combate ao covid-19" está de acordo com a
legislação brasileira.
À BBC News Brasil, o advogado Ronaldo
Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro
(ITS Rio), explicou que a Lei Geral de Teles permite que as companhias
compartilhem dados agregados, desde que o formato não permita a
identificação direta ou indireta do indivíduo.
Essa permissão
também está prevista na Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP), aprovada
em 2018, mas que ainda não entrou em vigor. Apesar disso, a lei já tem
servido de parâmetro legal nessa questão, ressalta Lemos.
"O medo
(sobre desrespeito à privacidade) é justificável e eu compartilho dele.
Mas é exatamente por isso que a LGDP foi criada. É uma lei que o
Congresso levou oito anos debatendo e o Brasil acabou seguindo o modelo
europeu, o mais elevado do mundo em proteção de dados", afirma.
Segundo
Lemos, a LGDP permite até mesmo o uso de dados pessoais
individualizados, como a Coreia do Sul está fazendo, em situações
excepcionais como "proteção à vida", "execução de políticas públicas
previstas em lei" e "para tutela de saúde", o que incluiria, na sua
avaliação, a situação atual de pandemia. Ele ressalta, no entanto, que
não significa "carta branca" para uso desses dados.
"Mesmo nos
casos das exceções, a lei é muito clara em dizer que a finalidade de uso
tem que ser totalmente estrita para o combate à emergência. Mais do que
isso, (o dado) não pode ser vendido, não pode ser cedido a terceiros",
explica.
"O uso também tem que respeitar o princípio da
proporcionalidade e necessidade, ou seja, não pode coletar mais dado do
que precisa. E, passada a emergência, o dado tem que ser completamente
deletado", acrescenta.
Mas, ainda que a legislação brasileira
permita ao governo em situações excepcionais acessar dados pessoais do
brasileiro, Lemos não vê sentido em isso ser feito agora.
Ele
lembra que a estratégia de rastrear potenciais pessoas contaminadas pelo
coronavírus só funciona se houver testagem em massa da população — o
Brasil, no entanto, tem conseguido testar uma parcela pequena da
população devido à falta de insumos.
O diretor do ITS Rio
questiona se de fato Bolsonaro está preocupado com a privacidade dos
brasileiros quando impede o uso dos dados de celular para conter a
pandemia. Ele nota que o governo não tem feito esforços para implementar
a nova legislação.
"A lei prevê a criação da Autoridade Nacional
de Proteção de Dados, o órgão que protege a privacidade das pessoas, e o
governo federal não moveu um dedo para fazer isso acontecer de
verdade", crítica.
'É possível ter localização e privacidade', afirma In Loco
A
In Loco, empresa brasileira que está fornecendo dados para Estados e
municípios, desenvolveu uma tecnologia própria de geolocalização de alta
precisão (entre um e três metros).
Essa tecnologia detecta
quando o dispositivo móvel permanece por períodos prolongados em
determinada localidade e envia os dados de geolocalização para os
servidores da In Loco, onde são criptografados e armazenados.
Segundo
a empresa, "não há coleta de dados que permita vinculação direta da
geolocalização à identidade de um indivíduo usuário do aplicativo".
A despeito da resistência de Bolsonaro, governos estaduais têm usado ferramentas de geolocalização
Entre seus clientes, há bancos e grandes varejistas,
que usam essa tecnologia em seus aplicativos para detectar possíveis
operações suspeitas e evitar fraudes.
No caso do repasse de
dados ao poder público, a In Loco diz que está usando "as mais avançadas
técnicas de anonimização", para que os usuários não possam ser
identificados.
Segundo o CEO da empresa, André Ferraz, estão
sendo coletados apenas dados de pessoas que consentiram por meio dos
aplicativos com o uso das informações, o que já soma quase 40 milhões de
aparelhos celulares.
"Queremos mostrar para o mundo que é
possível ter localização e privacidade, que é possível fazer uso
consciente e ético de dados", disse Ferraz.
Outro cuidado adotado
pela empresa é repassar para os governos apenas dados do dia anterior,
para evitar que a polícia possa em tempo real reprimir grupos que
estejam descumprindo a quarentena.
"Temos dentro da empresa uma
mini-Constituição de privacidade, e um dos princípios é que nosso dado
nunca pode ser usado para prejudicar o usuário final (do aplicativo que
leva a tecnologia da empresa)", disse.
"Nós consideramos a
possibilidade de identificar as aglomerações em tempo real, para ajudar a
dispersar esses grupos e evitar novas infecções. Mas aí pensamos: e se
alguém for preso, como vamos dormir? Então, decidimos não fazer isso",
explicou ainda.
Europa quer rastreamento de contatos
Enquanto
o governo Bolsonaro preferiu interromper qualquer uso de dados de
celular no enfrentamento ao coronavírus, a Comissão Europeia divulgou na
quarta-feira (15/04) um guia com parâmetros que os países membros da
União Europeia devem seguir ao desenvolver tecnologias de rastreamento
de contato.
O órgão entende que aplicativos que permitam rastrear
o contato entre as pessoas e emitir a alertas quando uma delas for
diagnosticada com covid-19 "podem desempenhar um papel fundamental em
todas as fases do gerenciamento de crises, especialmente quando o
momento for favorável para retirar gradualmente as medidas de
distanciamento social".
Ou seja, a ideia é que essa tecnologia
permita reduzir as restrições de circulação que hoje paralisam as
economias — algo que Bolsonaro tem priorizado em sua resposta à pandemia
ao ponto de levá-lo a demitir o ministro da Saúde Luiz Henrique
Mandetta, defensor do distanciamento social.
O documento da
Comissão Europeia estabelece, no entanto, que essas tecnologias devem
estar totalmente em acordo com a legislação de proteção de dados da
União Europeia.
O órgão diz também que o aplicativo deve ser
usado de forma voluntária e ser desabilitado quando não mais necessário.
Além disso, estabelece que o mecanismo deve preservar a identidade da
pessoa infectada. O documento destaca que essa tecnologia provavelmente
seria baseada em bluetooth.
Diego Aranha, da Aarhus University,
explicou à BBC News Brasil como funcionaria esse sistema em
desenvolvimento na Europa. A ideia é que o mecanismo, após ser
habilitado pelo indivíduo em seu celular, geraria chaves numéricas que
seriam detectadas através do bluetooth por outros celulares próximos que
também tivessem a ferramenta habilitada.
Assim, se um desses
indivíduos for diagnosticado com covid-19, poderia emitir um alerta que
chegaria a todos os celulares que tenham memorizado essas chaves
numéricas emitidas pelo aparelho do infectado.
Google e Apple se
uniram para desenvolver um sistema com esse princípio que possa ser
usado em aplicativos de governos já em maio. Nos próximos meses, a
intenção das duas empresas é desenvolver uma solução mais robusta, que
permita a participação de mais indivíduos.
"Privacidade,
transparência e consentimento são de extrema importância nesse esforço, e
esperamos criar essa funcionalidade em consulta com as partes
interessadas. Publicaremos abertamente informações sobre nosso trabalho
para outras pessoas analisarem", disse a Apple, ao anunciar a parceria.
A
proposta, porém, enfrentará desafios, como a possibilidade de
indivíduos emitirem falsos alertas de contaminação. Outra questão é que a
conexão por bluetooth pode ter certa lentidão, deixando de identificar
contatos rápidos, mas potencialmente contagiosos.
Por outro lado,
também há a possibilidade de registrar aproximações com distância de
mais de dois metros, que não representariam risco de transmissão do
vírus.
Especialistas da Universidade de Oxford, no Reino Unido,
que estão aconselhando o NHS (sistema de saúde britânico) estimaram que
80% da população precisaria usar um aplicativo com essa funcionalidade
para interromper a pandemia. Mesmo assim, um percentual menor já poderia
ajudar reduzir a velocidade de contágio. (BBC News Brasil)
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