segunda-feira, 27 de abril de 2020

Liberdade nem sempre é do lado de fora


Conheço a orfandade de pai; não conheço a orfandade de mãe. Nem a que sei, nem a que não tenho, me são menores.
Meu pai, com suas unhas roídas pelo sal, do curtume, não é apenas uma memória na banca da varanda onde fui criado, nem uma lembrança que oscila ao vento, como o capim verde, na roça, que foi sua vida. É, antes, a pedra onde ergui meu edifício inteiro de dever, trabalho, fazer o certo, e quando oro- eu que nem sei orar-, nos dias que me vem a fraqueza de dobrar os joelhos, dos golpes, é para perguntar porque ele não está aqui.
Minha mãe tem um descompasso entre seu físico de 90 anos, a vontade de trabalhar e mente perfeita. Independente e impossível de controlar sua disposição de administrar a roça, fazer comidas irresistíveis, doce de tomate, licor de leite, com o amor mais verdadeiro. E quando oro- eu que nem sei orar-, é para que a orfandade tarde tanto quanto o infinito.

Não terá meu mundo, o mesmo tamanho sem o tempero com que ela o temperou, nem sem as rosas de todos os tipos que planta no jardim. Não é uma questão de depender, é de referência, do fio de Ariadne a me guiar para fora do labirinto, pois, ela é a única testemunha de nós dois. É meu dever, por gratidão, amor, cumprir a risca o cuidado, sem direito a renúncia, ou cansaço, de seu envelhecer. Sem que nem um dia ela fique menos necessária, ou se torne uma estatística aceitável.
Ontem, fui ver minha mãe. Como sou de risco, por andar nos hospitais, não entro em sua casa. Com ela é de mais risco que eu, evito que qualquer um entre.
-mas você não é qualquer um- diz ela, do jeito que só as mães sabem dizer pra gente.
Converso da calçada, de máscara, por trás da cerca que protege a casa. Eu sou o inimigo.
Em golpe baixo, ela insiste: entre pra almoçar. Fiz galinha caipira ao molho pardo.
Apesar de ciente do afeto de seu convite, declino, aperto as mãos na grade e entendo: a liberdade nem sempre é estar do lado de fora. Sou um prisioneiro, enquanto tudo não acabar.
Se puder, fique em casa.

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