uma saudade *
Saudade.
Estamos em janeiro de 2019, comemorando data especial em São Gonçalo dos Campos, lugar onde deverei descansar meus ossos. Em concomitância, também festa -das grandes - na Soterópolis.
Na Cidade de São Salvador, acontece tradicional cortejo a partir da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, quase vizinha ao Elevador Lacerda, em franjas da praia de outrora, onde o mar lambia pés dos devotos.
Ali, aglomera-se multidão – sempre maior – rumo à Basílica do Senhor do Bonfim, padroeiro da baianidade e centro de irradiação de solidários eflúvios do sincretismo religioso, imanente elã desta terra mística primeiro retratada por Caminha.
Na Bahia costuma-se
dizer: quem tem fé vai a pé.
São oito
quilômetros, ao longo quais se baralham classes sociais, políticos de todo
jaez, deslumbrados turistas - fitinhas devocionais nos pulsos, fervor de
oração, - convictos no poder de suas invocações.
Uma saudade ricocheteia n’alma, invade-me.
Fantástica é a festa cromática, mesclada ao som do axé baiano, dos ritmos caribenhos e dos inconfundíveis toques do berimbau. Alegria, olhares seduzidos pela singeleza de cadenciados movimentos corporais, abrigo de fugidios pensamentos em direção ao paraíso das levezas do amar sem remorsos. Para tanto bastaria, como o fiz há milhares de dias, bordejar em um dos caminhões da procissão e deixar-se as coisas acontecerem.
Voltemos à
cronologia.
Dentro da tradição católica, festejam-se louvações às eminências santas, nos aniversários das respectivas mortes; assim, São Gonçalo do Amarante é festejado a 10 de janeiro. ‘Santo’ que, por sinal, tem a honra dos altares por ter sido proclamado Beato. Depois disto, o processo de canonização sofreu solução de continuidade: os documentos alusivos ao feito foram furtados ao Vaticano, por Napoleão. Mais à frente, quando devolvidos, a diligência ao passar pelos Alpes teria despencado montanha abaixo, perdendo-se a papelada processual.
A partir de então, Beato Gonçalo, provavelmente aporrinhado, não mais se propôs a milagres comprováveis e tudo caiu no esquecimento. Folclore religioso, aproveitado pela senhora dona, por anos muitos, das vidas e vivências dos habitantes desta colônia lusa e de boa parte do planeta Terra.
Suspiro e saudade
confundem-se.
Saudade e suspiro fundem-se.
Domingo, após o novenário onde o latim ainda pulsa, quando bom número de fiéis canta sem saber o quê, dia final da festa, aconteceu a matinal missa, igreja com seus quatrocentos lugares tomados. Ao cair da tarde, a procissão, espetáculo religioso multicolorido, o Padroeiro em seu florido andor, antecedido por incontáveis andores outros, cada qual com um santo ou uma santa, ombreados por homens e mulheres devotos das celestiais santidades.
Espelho de uma realidade ante a qual fico perplexo: ainda vigorarem, em pleno século 21 (onde jamais pensara estar), tantas crenças ligadas a tempo no qual, além da prática de sacrifícios cruentos, simples trovão seria manifestação de “vontade divina”.
Com saudade de tudo torno
a suspirar.
Um suspiro conforta uma
saudade.
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