domingo, 5 de junho de 2022

 


* Um suspiro conforta

               uma saudade * 

 

 Um suspiro, lá no fundo d’alma, acode-me.

Saudade. 

Estamos em janeiro de 2019, comemorando data especial em São Gonçalo dos Campos, lugar onde deverei descansar meus ossos. Em concomitância, também festa -das grandes - na Soterópolis. 

Na Cidade de São Salvador, acontece tradicional cortejo a partir da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, quase vizinha ao Elevador Lacerda, em franjas da praia de outrora, onde o mar lambia pés dos devotos. 

Ali, aglomera-se multidão – sempre maior – rumo à Basílica do Senhor do Bonfim, padroeiro da baianidade e centro de irradiação de solidários eflúvios do sincretismo religioso, imanente elã desta terra mística primeiro retratada por Caminha. 

Na Bahia costuma-se dizer: quem tem fé vai a pé.

São oito quilômetros, ao longo quais se baralham classes sociais, políticos de todo jaez, deslumbrados turistas - fitinhas devocionais nos pulsos, fervor de oração, - convictos no poder de suas invocações.

 O branco é a cor prevalecente das indumentárias, a encobrir corpos de pele alvíssima, veias azuis, e sobre os da negra gente dominante, luzindo azulados tais negros tintos em seus trajes brancos. 

Uma saudade ricocheteia n’alma, invade-me. 

Fantástica é a festa cromática, mesclada ao som do axé baiano, dos ritmos caribenhos e dos inconfundíveis toques do berimbau. Alegria, olhares seduzidos pela singeleza de cadenciados movimentos corporais, abrigo de fugidios pensamentos em direção ao paraíso das levezas do amar sem remorsos. Para tanto bastaria, como o fiz há milhares de dias, bordejar em um dos caminhões da procissão e deixar-se as coisas acontecerem. 

Voltemos à cronologia.

 Atravessamos, portanto, a semana de festas e louvações ao padroeiro, liturgicamente beato, posto nunca santificado. Gonçalo do Amarante tornou-se santo pela força devocional portuguesa, cujas raízes estenderam-se por diversos rincões pátrios. Em dado momento, foram treze os municípios nomeados São Gonçalo.

 O mosteiro-mor irradiante dos protestos de estima à singular figura situa-se na cidade de Amarante, norte de Portugal, às margens do Rio Tâmega. Trilhei tais trilhas há mais de vinte anos e lá, por ser severo o frio em janeiro, a data é comemorada em junho revestida de grande solenidade. 

Dentro da tradição católica, festejam-se louvações às eminências santas, nos aniversários das respectivas mortes; assim, São Gonçalo do Amarante é festejado a 10 de janeiro. ‘Santo’ que, por sinal, tem a honra dos altares por ter sido proclamado Beato. Depois disto, o processo de canonização sofreu solução de continuidade: os documentos alusivos ao feito foram furtados ao Vaticano, por Napoleão. Mais à frente, quando devolvidos, a diligência ao passar pelos Alpes teria despencado montanha abaixo, perdendo-se a papelada processual. 

A partir de então, Beato Gonçalo, provavelmente aporrinhado, não mais se propôs a milagres comprováveis e tudo caiu no esquecimento. Folclore religioso, aproveitado pela senhora dona, por anos muitos, das vidas e vivências dos habitantes desta colônia lusa e de boa parte do planeta Terra. 

Suspiro e saudade confundem-se.

Saudade e suspiro fundem-se. 

Domingo, após o novenário onde o latim ainda pulsa, quando bom número de fiéis canta sem saber o quê, dia final da festa, aconteceu a matinal missa, igreja com seus quatrocentos lugares tomados. Ao cair da tarde, a procissão, espetáculo religioso multicolorido, o Padroeiro em seu florido andor, antecedido por incontáveis andores outros, cada qual com um santo ou uma santa, ombreados por homens e mulheres devotos das celestiais santidades. 

Espelho de uma realidade ante a qual fico perplexo: ainda vigorarem, em pleno século 21 (onde jamais pensara estar), tantas crenças ligadas a tempo no qual, além da prática de sacrifícios cruentos, simples trovão seria manifestação de “vontade divina”. 

Com saudade de tudo torno a suspirar.

Um suspiro conforta uma saudade.



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