*
Grão de
pó *
“Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão,
até que
volte à terra, visto que dela foi tirado,
porque
você é pó, e ao pó voltará”.
(Gênesis 3:19)
Quando homens-velhos dispõem-se, alma à flor da pele, a manifestar opiniões oriundas da sua vivência, conflitantes com o quanto aprenderam, expressam pontos de vista pessoais. Ao fazê-lo, não visam convencer quem quer seja a concordar com em eles.
Manda o bom senso não se discutam preferências gustativas, cromáticas, políticas, esportivas, religiosas e outras. Não foi, pois, para estabelecer confronto eu trazer à tona uma compreensão minoritária do assunto. Ao abordá-la, não nutro pretensão de abrir portas para estéreis discussões. A maioria de meus leitores tem respeitáveis e compreensíveis motivos – estribados, tanto na formação civilizatória cristã, quanto no “consenso universal” - para discordar.
Confio sejam claras
tais considerações e prossigo.
A formulação teocrática adviera do passado
quando se acreditava fosse o poder temporal concessão divina e, como tanto,
dependesse da unção de representante da mesma.
Hoje, o estado é
laico, mas são comuns feriados de cunho religioso ligados à tradição.
Além disso, na pátria amada, nomeia-se alguém
por ser “terrivelmente evangélico”, sintoma de haver algo confuso abaixo da
linha do equador. Evangélico, agnóstico, espírita, ateu, católico, islâmico,
budista, adepto do culto aos orixás, qualquer seja a (des) crença não é
atributo a ter-se em conta para credenciar alguém a cargo público.
Tirante isso, manifestações de deísmo são uma constante.
Em tudo e por tudo, predominam brados retumbantes, manifestações verbais e gestuais voltadas a um ser supremo. Dita entidade, acima da nossa capacidade compreensiva - onisciente, onipresente, onipotente - traveste-se ora em gestor, ora em curador, ora em torcedor.
Tanto fosse pouco, de humor variável, transforma-se na velocidade do pensamento: ora vaidoso, ora furioso, ora vingativo, ora exclusivista, ora pai generoso, ora capitalista.
Houve momento na vida no qual, ao despojar-me de crenças e dogmas, senti-me mais confortável, sem complexos de culpa, sem temores quanto à finitude do ser e, importante, sem medonhos medos de encontrar belzebu e arder no inferno.
Tal íntimo conforto deu-se por abdicar de querer equacionar o mistério da humana finitude com a crença de vida após a morte. Assim, desapossei-me de enorme carga de preceitos e preconceitos, bengalas e consolos.
Em crônica antiga disse acreditar nos eternizarmos através do DNA: nossas atitudes e nossos filhos são prolongamento de nossas vidas.
Tenho amigos com
pontos de vista semelhantes, em silêncio, para evitar colisões com salvadores
de almas.
Retomemos o fio da meada.
O tema ora tratado é um verdadeiro “Deus nos acuda”.
Nas grandes cidades, templos-auditórios - onde não se dobram joelhos - contrapõem-se às antigas igrejas e mesquitas. Neles, políticos de estado laico deixam-se ungir, a exemplo de tempos quando sem a unção papal a realeza não se validava. Deus parece continuar sendo político. Tais templos em áreas urbanas nobres e construções luxuosas surpreendem. Deus é ostentação. As magnificências artístico-arquitetônicas não são fato recente.
Em espaços públicos, câmaras, tribunais, cartórios - lugares consagrados para a Constituição Federal - é usual encontrar-se um exemplar da Bíblia. Em certas comunas pratica-se a leitura de trecho do Livro Sagrado na abertura das sessões, constando em ata o trecho lido: tudo na contramão do laicismo.
Emissoras de TV e Rádio, concessão de um poder público laico, exibem programas religiosos de variados matizes, alguns até com palavras de ordem contra o capeta. Deus parece ser fúria.
Há alguns anos, a expressão “o Papa veste Prada” rodou mundo. Deus seria fashion?
Há quem justifique catástrofes - o terremoto em Sodoma e Gomorra ou a presente pandemia - como “castigo de Deus”. Deus será vingança?
Onde vivo, já ouvi pregar “acarajé é coisa do diabo”. Deus é fraude.
Nas ruas deste recanto do Recôncavo Baiano, em postes, há placas inscritas: Só Jesus salva! Um jogo de palavras. Deus parece ser exclusividade.
Falando-se em jogo,
atletas de futebol – no plural, pois a cena repete-se à exaustão – após o gol,
voltam indicadores ao alto, suposta morada divina. Deus, pelo visto, é torcida.
Os da equipe contrária agem da mesma forma:
joelhos ao chão, dedos ao céu. Deus, no caso, parece ser volúvel.
Se você for ocupado ou não souber rezar, não há problema. Em jornais e cartazes do metrô há oferta de aplicativo para encomendar orações e intenções. Outras pessoas rezarão por você: Deus está on-line. Todavia, não esqueça, terá algo a pagar em troca: Deus deve ser capitalista.
Chegamos ao cúmulo de
colocar o nome de Deus nas cédulas de dinheiro, haverá algo tão sujo quanto uma
cédula?
Ora-se em silêncio,
mas Deus parece ser surdo, tal o nível do som dos alto-falantes da maioria dos
templos.
Se o fizéssemos,
descolando-nos do hábito de atribuir à vontade de um ser supremo o quanto acontece
ou deixa de acontecer, talvez concluíssemos ser a sempiterna indagação da
“causa não causada” - nossa mais poderosa quimera - simples construção humana e
cruel e a aceitássemos tal qual é, pois com toda certeza, se Deus existe, Deus
é mais! Muito mais do quanto imaginar se possa. De tanto, não duvido.
Hugo A de Bittencourt
Carvalho
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