domingo, 12 de junho de 2022

 

* Grão de pó *

                                                            “Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão,

até que volte à terra, visto que dela foi tirado,

porque você é pó, e ao pó voltará”.

(Gênesis 3:19)

 Dostoiévski, na fase madura, produziu “Memórias do Subterrâneo”, onde sondou os mistérios da existência e a amplitude da alma humana. Foi quando o autor superou os modismos românticos de suas obras anteriores.

Quando homens-velhos dispõem-se, alma à flor da pele, a manifestar opiniões oriundas da sua vivência, conflitantes com o quanto aprenderam, expressam pontos de vista pessoais. Ao fazê-lo, não visam convencer quem quer seja a concordar com em eles. 

Manda o bom senso não se discutam preferências gustativas, cromáticas, políticas, esportivas, religiosas e outras. Não foi, pois, para estabelecer confronto eu trazer à tona uma compreensão minoritária do assunto. Ao abordá-la, não nutro pretensão de abrir portas para estéreis discussões. A maioria de meus leitores tem respeitáveis e compreensíveis motivos – estribados, tanto na formação civilizatória cristã, quanto no “consenso universal” - para discordar. 

Confio sejam claras tais considerações e prossigo.

 Vivemos em estado, onde a religião foi excluída da organização estrutural-funcional.

A formulação teocrática adviera do passado quando se acreditava fosse o poder temporal concessão divina e, como tanto, dependesse da unção de representante da mesma.

 No mundo ocidental a história do papado fala por si.

Hoje, o estado é laico, mas são comuns feriados de cunho religioso ligados à tradição.

Além disso, na pátria amada, nomeia-se alguém por ser “terrivelmente evangélico”, sintoma de haver algo confuso abaixo da linha do equador. Evangélico, agnóstico, espírita, ateu, católico, islâmico, budista, adepto do culto aos orixás, qualquer seja a (des) crença não é atributo a ter-se em conta para credenciar alguém a cargo público.

 Afagos políticos a adeptos de uma ou outra crença são indevidos e demagógicos.

Tirante isso, manifestações de deísmo são uma constante. 

Em tudo e por tudo, predominam brados retumbantes, manifestações verbais e gestuais voltadas a um ser supremo. Dita entidade, acima da nossa capacidade compreensiva - onisciente, onipresente, onipotente - traveste-se ora em gestor, ora em curador, ora em torcedor. 

Tanto fosse pouco, de humor variável, transforma-se na velocidade do pensamento: ora vaidoso, ora furioso, ora vingativo, ora exclusivista, ora pai generoso, ora capitalista. 

Houve momento na vida no qual, ao despojar-me de crenças e dogmas, senti-me mais confortável, sem complexos de culpa, sem temores quanto à finitude do ser e, importante, sem medonhos medos de encontrar belzebu e arder no inferno. 

Tal íntimo conforto deu-se por abdicar de querer equacionar o mistério da humana finitude com a crença de vida após a morte. Assim, desapossei-me de enorme carga de preceitos e preconceitos, bengalas e consolos. 

Em crônica antiga disse acreditar nos eternizarmos através do DNA: nossas atitudes e nossos filhos são prolongamento de nossas vidas. 

Tenho amigos com pontos de vista semelhantes, em silêncio, para evitar colisões com salvadores de almas.

 Expressões alusivas a um ser supremo surgem em meu falar do dia-a-dia, porém não espelham crença: são marcadores conversacionais, cacoetes herdados da linguagem coloquial; em meus escritos, tais alusões são ausentes. 

Retomemos o fio da meada. 

O tema ora tratado é um verdadeiro “Deus nos acuda”. 

Nas grandes cidades, templos-auditórios - onde não se dobram joelhos - contrapõem-se às antigas igrejas e mesquitas. Neles, políticos de estado laico deixam-se ungir, a exemplo de tempos quando sem a unção papal a realeza não se validava. Deus parece continuar sendo político. Tais templos em áreas urbanas nobres e construções luxuosas surpreendem. Deus é ostentação. As magnificências artístico-arquitetônicas não são fato recente.  

Em espaços públicos, câmaras, tribunais, cartórios - lugares consagrados para a Constituição Federal - é usual encontrar-se um exemplar da Bíblia. Em certas comunas pratica-se a leitura de trecho do Livro Sagrado na abertura das sessões, constando em ata o trecho lido: tudo na contramão do laicismo. 

Emissoras de TV e Rádio, concessão de um poder público laico, exibem programas religiosos de variados matizes, alguns até com palavras de ordem contra o capeta. Deus parece ser fúria. 

Há alguns anos, a expressão “o Papa veste Prada” rodou mundo. Deus seria fashion? 

Há quem justifique catástrofes - o terremoto em Sodoma e Gomorra ou a presente pandemia - como “castigo de Deus”. Deus será vingança? 

Onde vivo, já ouvi pregar “acarajé é coisa do diabo”. Deus é fraude.  

Nas ruas deste recanto do Recôncavo Baiano, em postes, há placas inscritas: Só Jesus salva! Um jogo de palavras. Deus parece ser exclusividade. 

Falando-se em jogo, atletas de futebol – no plural, pois a cena repete-se à exaustão – após o gol, voltam indicadores ao alto, suposta morada divina. Deus, pelo visto, é torcida.

Os da equipe contrária agem da mesma forma: joelhos ao chão, dedos ao céu. Deus, no caso, parece ser volúvel.

 Em automóveis, no vidro traseiro, é usual ler-se Foi Deus quem me deu: Deus é pai-provedor. 

Se você for ocupado ou não souber rezar, não há problema. Em jornais e cartazes do metrô há oferta de aplicativo para encomendar orações e intenções. Outras pessoas rezarão por você: Deus está on-line.  Todavia, não esqueça, terá algo a pagar em troca: Deus deve ser capitalista. 

Chegamos ao cúmulo de colocar o nome de Deus nas cédulas de dinheiro, haverá algo tão sujo quanto uma cédula?

 Orar é ato introspectivo, individual, não necessariamente atrelado a alguma fórmula.

Ora-se em silêncio, mas Deus parece ser surdo, tal o nível do som dos alto-falantes da maioria dos templos.

 Atrás de todas considerações, mundo afora, persiste o hábito de usar o nome de Deus como disfarce, sem darmos às cenas da vida seus verdadeiros nomes. 

Se o fizéssemos, descolando-nos do hábito de atribuir à vontade de um ser supremo o quanto acontece ou deixa de acontecer, talvez concluíssemos ser a sempiterna indagação da “causa não causada” - nossa mais poderosa quimera - simples construção humana e cruel e a aceitássemos tal qual é, pois com toda certeza, se Deus existe, Deus é mais! Muito mais do quanto imaginar se possa. De tanto, não duvido.

 


Hugo A de Bittencourt Carvalho

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