sábado, 25 de junho de 2022

* Inesperado encontro *

Meus pontos de encontro das doze badaladas foram-se às calendas.

Passaram-se praticamente seis meses sem desfrutar a ambiência típica dos bares, aos quais me afeiçoara, em tempos quase soterrados pelos vendavais na trilha do existir em carne e osso. Assim, o alto astral da mesa de um boteco, intensificado pelo vozerio dos habituais frequentadores; pelas idas e vindas do garçom incitando à companhia das ‘amigas louras’; no aroma das frituras emanado das bandas da cozinha; na chegada de um ou outro distribuindo festivos bons-dias, tal conjunto desfrutado de maneira despercebida, mas intensa, por ora é página virada. 

Tais circunstâncias funcionavam como agentes potencializadores do bem estar na escrita - por detrás da cortina do palco das palavras, ditavam o script. Cada cena uma espécie de arma, revólver engatilhado pela visão e pelo olfato, estímulo a revolver a mente. Tanto para trás, quanto para frente. 

Agora, no largo momento pandêmico, nada resta senão grande vácuo como o espaço entre as estrelas que, a duras penas, pouca luz alcançam a meus poemas. 

Mesmo assim, intrépido e ousado, equilibrando-me por arames, atrevo-me superar o silente fado intentando um aguaceiro de palavras, em meio ao temporal das preocupações, e só me acalmo ao ver no azul celestial o deslumbrante arco policromo, prenunciando bonança tardia. Transformo tal arco em alvo e saco da aljava a flecha de mais um conto com fatos de minha singela infância. 

Aonde vais tu, esbelto infante? 

Vou-me alegre, cabeça altiva, peito arfante, a pelejar na narrativa da primeira experiência – experiência não, audiência – de entreveros à difusa luz de um abajur, não lilás. Tinha o formato de tronco de cone, opaco, mas translúcido, em um azul desmaiado quase o azul das piscinas bem tratadas, lotado de coloridos peixinhos e alegorias marinhas. Quando aceso, em giro constante, quase hipnótico, remetia à lembrança de um aquário vivo. Eu vivia pedindo para dormir naquele quarto reservado a hóspedes, para curtir o enlevo da inesquecível imagem em movimento.

 Antes, porém, devo esclarecer onde agora estou se, como sabido, sumiram os bares do meio-dia, assim como escoaram os minutos gastos na leitura até aqui. 

Já o disse, alhures. Como caracol, cada vez mais com a casa às costas, tenho restringido espaços de convivência. Ampliei as funções de meu dormitório. O dito, além de abrigar o casal por um terço da vida, converteu-se também em ponto de encontro, tanto com inefáveis ‘louras’ – em copos, não corpos - quanto com outras igualmente amigas: as canetas, sem as quais meu viver não seria o mesmo. 

Por mais me esforce, não consigo palavrear o que me acode e sacode, quando permito uma delas assumir o comando da narrativa. Como agora, quando manuscrevo. 

Ocasionais traições acontecem ao me valer da escrita digital. Se me fosse dado traduzir a diferença entre o empunhar da pena e o digitar das letras – perdoem a comparação - seria algo como dispensar a melhor companheira, a caneta, para estar com a boneca inflável, as teclas frígidas. 

Assim, compelido por imposição da modernidade a conviver com a boneca, sempre quando posso, diga-se, volvo à insubstituível companhia da caneta amada. A mesma, como paradisíaca serpente, desfaz-se em deslumbrados volteados, as letras, combinando-as entre si, e dando sentido ao estar comigo enquanto escrevo, e consigo enquanto decifra-me.

 Mas, abandonemos alegorias extemporâneas dessa história e retrocedamos no túnel do tempo. 

Na Rua Carlos Costa Pinto, mais conhecida como Rua do Canalete, nº 458, cidade de Rio Grande, há mais de 70 anos, havia um casarão antigo, morada de meus avós maternos. De madeira, como muitas casas gaúchas, na cor cinza, à frente tinha um jardim lotado de melindros. No terreno, aos fundos, havia outra casa para hospedar familiares em visita, para tratar de negócios em Rio Grande ou à busca de emprego. 

Meus avós, com armas, bagagens e minha mãe então aos dois anos, a tiracolo, aventuraram-se mar afora, em 1919, e deixaram Santa Catarina para atrás nas histórias de suas vidas. Selaram seus destinos em Rio Grande, onde meu avô conseguira emprego como guarda-livros no porto da primeira cidade do Rio Grande do Sul. Lembro bem, o local de trabalho de velho chamava-se Departamento de Portos, Rios e Canais. 

Minha avó, por sua vez, descendia de atávicos laços ligados à pesca, família ligada à captura de baleias, intensa atividade quando de sua infância. Da velha há incontáveis episódios, dariam um livro. Limito-me a dois, a seguir, resumidos temendo não surja outra oportunidade para tanto. 

O primeiro.

As baleias estão chegando!

Garopaba, cidade de meus ancestrais maternos, era o epicentro da pesca de baleias, beira mar formada por uma baía, tendo quase colado à linha da maré enchente, um promontório.

No topo do mesmo, então conhecido como Morro da Vigia, meu bisavô punha minha avó mais outras crianças, olhos voltados ao mar, para quando avistassem o primeiro esguicho de baleias à distância, descessem correndo para avisar os pescadores da aproximação dos cetáceos. Isso nos primórdios do século 20.

                     O segundo episódio,

Olha lá, o boitatá!

Sair-se de um estado a outro, àquela época, só por cabotagem. Viagens marítimas, pelos “Itas”, consumiam dias para percorrer distância que hoje, por rodovia, se percorre em uma jornada. Falo do percurso entre Garopaba e Rio Grande.

Aqui, fico a imaginar a odisseia de tais andanças navais, a viajantes desacostumados às bruscas mudanças do ponto de equilíbrio.

Quando a bordo, já nas costas de Rio Grande, minha avó, à noite, deparando-se com o distante tremelicar das lâmpadas da cidade, assustada e ingênua, exclamou ao marido: “Waldemar! Olha lá o boitatá!” Ele, com toda paciência do mundo, explicou tratar-se de luz elétrica; ela aos 23 anos, via pela vez primeira. 

Retornemos ao quadro dos pescadores e à minha avó em tal contexto. 

À época, além da captura de baleias com arpões, também se praticava o pescado com enormes redes. A estrutura social da pesca era formada por dois segmentos. Os pescadores propriamente ditos e os proprietários de redes, geralmente duas ou mais pessoas, um processo de ascensão percorrido por meu bisavô. Era ele proprietário de várias redes e vivia da “cessão de uso”, remunerada pela partilha de um percentual da pesca alcançada. Como qualquer bem, a propriedade integral ou de parte das redes, - chamadas parelhas – era transferível a herdeiros, em vida, ou pela morte do titular. 

Para ajudar meus avós, o velho, meu bisavô, cedeu à filha a participação em algumas parelhas de sua propriedade. Os recursos daí advindos eram guardados e remetidos, em espécie, através dos viajantes a Rio Grande, boa parte hóspedes na Casa do Canalete (como era conhecida) e se convertera numa espécie de embaixada dos “catarinas”. No período de pesca das tainhas, chegavam aos borbotões. Muitos, inclusive, com suas mulheres ou moças outras, aparentadas. Não percamos de vista, então as famílias serem numerosas. Minha avó teve treze irmãos, entre homens e mulheres, todavia não seguiu tal tradição. Teve uma só filha, minha mãe. Anote-se, não por desejo próprio, pois lidara a vida toda com algo conhecido por prolapso uterino. Um dos incontáveis assuntos-tabu, nunca comentados, muito menos com as crianças.

             Estamos agora, a trinta anos de vivência de meus avós em terras gaúchas.

             Ano da graça de 1949.

Mesmo assim não lembro qualquer data festiva, seja qual fosse, comemorada com churrasco típico dos pagos. A dieta alimentar da casa avoenga foi sempre calcada em peixes e crustáceos. As tainhas, bagres e corvinas, peixes preponderantes nas águas rio-grandinas, reinavam à mesa. Fritos ou de escabeche. Os camarões avermelhados competiam em quantidade com os grãos de arroz no risoto semanal. Como ainda nem se falava em limitação de pesca para os momentos de defeso, as ovas de tainhas à milanesa, divino caviar brasileiro, eram servidas em transbordantes terrinas. Carne bovina, feijoada? Raramente marcavam presença. Aquela em bifes acebolados ou almôndegas; essa em grãos, no intermeio do cozimento socados em alguidar, para engrossar o caldo. Em tal ocasião, agarrava-me às saias da avó para ganhar um bolinho de feijão triturado. A “farinha de guerra” - de mandioca, leia-se - em contraposição à de trigo, “farinha do reino”, longe estava da qualidade da “copioba” das terras do Recôncavo Baiano. Mesmo assim, com ela minha avó se esmerava, valendo-se do molho dos bagres escaldados, na feitura de pirões, os quais ao rememorar, minhas papilas salivam.

             Conosco morava uma sobrinha deles, em temporada para ajudar nas lides domésticas. Penso provável fosse pelo avolumado serviço resultante das anuais presenças de pescadores catarinenses. Moça ao redor de vinte anos, não recordo seu nome de batismo, lembro do hipocorístico, Cedilha.

             Cedilha ocupava a casa aos fundos e, como é compreensível, comigo um fedelho de oito anos, pouco relacionamento havia. Regularmente nos víamos às refeições.

         Lá pelas tantas, entre os “catarinas” chegados para o período das tainhas, aparece um casal jovem. O marido, uns 30 anos, parente de minha avó, chamava-se Oscar. Ela, a mulher, pouco mais jovem, tinha nome estranho, Liobá. Daí, nunca haver esquecido. 

Oscar e Liobá foram acolhidos em outro quarto da embaixada. Ao iniciar o trabalho ao mar, sendo a Casa do Canalete distante da área da pesca, Oscar e outros pescadores, passavam a temporada afastados de suas famílias. Eram alojados em redes, nas dependências da Colônia de Pescadores, galpão às margens de onde embarcavam para lançar redes. 

Dou-me conta serem tais galpões, respeitadas as diferenças, versão dos galpões dos gaudérios gaúchos atrelados às atividades campeiras. Aqueles, os pescadores, alimentavam-se de peixes. Esses, os peões das fazendas, tomavam chimarrão e comiam carne assada nos braseiros. Todos brasileiros, diferenciados apenas nas lides e nos hábitos. 

Como acontecia todos os anos, Oscar fora portador dos rendimentos devidos a minha avó, por sua participação nas parelhas de pesca catarinenses. Em tal momento, novidades havia: inesperadas compras, melhorias na casa, coisas novas, alegrias. 

Iniciado o mutirão pesqueiro, Oscar some do mapa. Cedilha e Liobá quedam-se na casa aos fundos, juntando travesseiros naquele dormitório antes referido, no qual o abajur-aquário-carrossel projetava nas paredes, peixinhos, camarões e cavalos marinhos. 

Quanto a mim, não indaguem o porquê, provavelmente neófito em novidades, houvera insistido com a avó para dormir na casa dos fundos. Sempre atraído pelo carrossel-aquário-abajur, nessa invertida ordem. Belo dia, melhor dizendo, bela noite estava na companhia de Cedilha e Liobá. Pretextando medo do escuro, fui deitar na cama de casal do quarto de meus sonhos, onde se acomodava a citada dupla. Era inverno, chuvoso e frio. A noite acobertada por pesadíssimos acolchoados, pouco aqueciam. 

Naqueles tempos, nada de estranho ou curiosidade alguma acudia a um infante de oito anos. Altas horas. O enfeitiçado enlevo do mágico abajur cessara. Fora desligado. Em minha cabeça, todavia, seguia rodando, a tudo iluminando, peixinhos, cavalos marinhos, camarões, girando no hipnótico carrossel aquático. Eu, espiando. Ou melhor, imaginando. Ouvidos atentos. Sussurros. Respirações ofegantes. Colchão vibrando. Cedilha e Liobá açodando-se, abraçando-se, empilhando-se, murmurando palavras incompreensíveis. Evidente, nada haver entendido de tais circunstâncias, mas uma luz imaginária, semelhante a do abajur desligado, alertou-me para nada comentar com ninguém, quanto ao episódio. 

Calei-me por mais de setenta anos. Agora, sem saber se as protagonistas ainda vivem, algo pouco provável, atrevi-me inserir em conto o inesperado encontro. 

Os tempos passam, mas muitas práticas humanas seguem cobertas por lençóis. 

Hugo A. de Bittencourt Carvalho, economista, cronista, ex-diretor das fábricas de charutos Menendez & Amerino, Suerdieck e Pimentel, vive em São Gonçalo dos Campos – BA.

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