segunda-feira, 20 de junho de 2022

Segunda é DIA DE CRÔNICA : O sabor do grão

Toda memória é inventário de um passado que rosna para permanecer além do que durou. Ninguém sabe ao certo como uma lembrança é escolhida para permanecer no alforje e outras – às vezes, desejadas - viram apenas escamas em camadas sucessivas e inacessíveis. Dessa seleção feita pelo apagar e acender da lenha que clareia o acontecido é que vamos compreendendo a marcha e tocando em frente. A administração destes achados e perdidos é mais complicada que o metaverso, não havendo manual, ou regras do jogo, para colocar uma lembrança no alto do carro alegórico e deixar outra sem fantasia para o desfile.

Há, no entanto, provocações que abrem o bocapiu do tempo, violam o esquecimento, e nos levam a uma disparada sem tréguas pelas pastagens mais amenas do que amamos um dia. Acontece comigo toda vez que arrumo a lenha seca- um tronco de jaqueira, galhas de um cajueiro- com uns gravetos por baixo, e acendo a fogueira para assar o milho verde na rodilha das brasas. Às vezes, jogando a espiga com a casca; em outras, descascado, em um espeto, para ir tostando devagar, girando para assar por igual. O braseamento, longe da fumaça que mascara o gosto, exige cuidado. É possível notar a mudança de cor, o calor do fogo tatuando a temperatura na carne leve dos grãos, uma marca aqui e ali mais escura, sinalizando a exatidão do ponto. E, aí, para saciar a espera, ele vem quente na palha, o aroma primitivo anunciando o sabor que iremos ter ao debulharmos os caroços até só restar o sabugo vazio. Era assim que minha mãe fazia, na fogueira acesa por meu pai.
Meu pai era um homem sem feriados, nem festa, exceto no período junino. Ele fazia uma grande fogueira e me mostrava como armar e acender. Talvez julgasse que era dever essencial de um pai ensinar o filho a não brincar com fogo. Era, também, o único momento em que todos estavam ali sem seus deveres e ordens, apenas desfrutando do que minha mãe fazia com arte: licor de leite, canjica com canela, bolo de puba, de aipim- que exalava o pecado da gula. O beiju na palha de banana com umidade exata. E o milho que ela ia assando para cada um de nós, sentados ao redor do fogo como em um ritual.
A fogueira já não arde nos corações de meu pai e irmão e a artrose de minha mãe nos tirou seus aromas e sabores- esse perder miúdo e contínuo do envelhecer-, mas à noite quando provar o primeiro grão do milho assado no fogo que acenderei o gosto da memória me fará ter todos por lá, mais uma vez.

Nenhum comentário: