segunda-feira, 6 de junho de 2022

Segunda é dia de CRÔNICA: O único livro de meu pai

Minha mãe começou a ensinar muito cedo, em uma escola rural, ainda estudante. Morava em Lustosa, cidade em encolhimento, com sobrevida cada vez menor, como minha mãe. Ensinava em outro munícipio e todas as madrugadas fazia umas quatro léguas a cavalo para dar as aulas e voltava para estudar à tarde. Trotava na sela sob chuva ou sol o que fez com que montasse a cavalo melhor que muito homem. Uma vez por mês pegava um resfolegante, calorento, lento, trem, para ir a Santo Amaro- viagem para um dia inteiro- receber os poucos caraminguás, mas o bastante para pagar o Educandário e Orfanato do Padre Norberto e terminar seu curso.

Tinha perdido a mãe aos oito anos e foi criada por uma negra africana, casada com um vizinho de meu avô, com seus outros vinte e um irmãos. Era desaforada-ou necessitada- demais para ter medo e intuía que os livros eram sua única chance. Ensinou a vida inteira naquela escola municipal da zona rural, inclusive a mim, que aprendi a ler - comer merenda pública- e escrever com ela.
Meu pai perdeu a mãe aos nove anos- não tive a chance de ser criado por avós- e teve de trabalhar para sustentar a família, afinal, era arrimo de outros vinte e um irmãos- sou de duas famílias de fazedores seriais de filhos. Foi autodidata e comerciante bem-sucedido, mas nunca teve livros, exceto um famoso chamado 2455 –Uma cela no corredor da morte, de Caryl Cheesman- o Bandido da Luz Vermelha, americano que escapou várias vezes da execução fazendo sua própria defesa, após estudar livros jurídicos na prisão.
Lembro de trecho em que ele- criado em reformatório- diz ao ouvir uma garota tocar piano: "não entendo música, mas vejo as cores".
Meu pai nunca o leu, nem sabia porque comprou, mas o li, sofregamente, vendo-o escapar da cadeira elétrica no último instante, até o dia que não deu mais certo que a vontade de matar do estado sempre vence.
Não sei se por solidão rural- aquela beleza pungente e melancólica que tem um vale verde quase desabitado, aquele vento que vai debulhando as folhas altas do capim, ou o lamento das rodas do carro de boi – em que tanto andei- moendo as distâncias, no trabalho braçal, me afeiçoei aos livros. Talvez porque dissessem o que eu não sabia dizer. Ou escutassem o que eu precisava falar.
Hoje, ao arrumar umas coisas velhas na casa da roça encontrei o único livro de meu pai. Um pouco puído- como sua memória- mas, me fez lembrar de todos nós juntos por lá, longe do corredor, e da ajuda que minha mãe me deu com o que eu não compreendia.
A música é outra, e ainda não entendo, mas revi as mesmas cores!


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